Notícias de outras ilhas: Tarso de Melo

Notícias de outras ilhas: Tarso de Melo
(Foto: Arquivo pessoal)

 

Quando a ideia dessas “Notícias de outras ilhas” foi acolhida pela Revista Cult e comecei a fazer os primeiros convites, no final de março, eu não imaginava que a série de publicações diárias – ou mesmo a quarentena! – iria tão longe. Quase três meses depois, muitos de nós ainda estamos isolados e chegam ao fim essas trocas que já formam um lindo arquipélago, fruto da contribuição de 80 poetas que indicaram cerca de 250 poemas, de tempos e línguas diferentes, para esticar uma ponte entre nossas ilhas num momento tão difícil e triste para todos nós. A cada um desses quase 80 dias de “Notícias” foi maior a satisfação de ver as ilhas circularem e serem recebidas com alegria pelos leitores. Era o melhor que poderíamos esperar.

Mas chegou o dia de dar notícias da minha ilha – e agradecer mais uma vez.

Escolher três poemas para essa ilha não foi tarefa fácil (o quanto exigi dos meus convidados!). Olhando para o conjunto das publicações, vejo o quanto aprendi com as indicações dos poetas – esses leitores especialíssimos – e também que já passaram por essas ilhas alguns dos poemas e autores de que mais gosto, de que mais preciso. Por sorte, meus atentos convidados deixaram para mim, para minha ilha, três poemas a que sempre volto – na estante e na memória – e se somam muito bem a tanta beleza que já circulou por aqui. Assim espero.

A principal notícia que tenho a enviar de minha ilha, no entanto, é um imenso OBRIGADO a todos que aceitaram o convite e enviaram suas notícias, bem como a todos os leitores dessas ilhas. Agradecimentos especialíssimos vão para Daysi Bregantini, por acolher e promover tanta poesia, tanta luta, tanto pensamento na Cult há mais de duas décadas, e para Amanda Massuela, pela competência e carinho com que cuidou de cada uma das ilhas.

Faço questão de colocar aqui, nas minhas notícias, o nome de cada um desses amigos que tão generosamente deram notícias de suas ilhas: Marcelo Ariel, Michaela v. Schmaedel, Ruy Proença, Marcelo Montenegro, Josoaldo Lima Rêgo, Marcelo Lotufo, Camila Assad, Eduardo Sterzi, Leonardo Gandolfi, Matheus Guménin Barreto, Carlos Orfeu, Natália Agra, Adriane Garcia, Cesare Rodrigues, André Luiz Pinto, Thiago Ponce de Moraes, Wilson Alves-Bezerra, Paulo Ferraz, Demétrio Panarotto, Reynaldo Damazio, Djami Sezostre, Patrícia Lavelle, Chantal Castelli, Reuben, Carlos Augusto Lima, Renan Nuernberger, Ronaldo Cagiano, Micheliny Verunschk, Prisca Agustoni, Dalila Teles Veras, Julia de Souza, Eltânia André, Fabricio Corsaletti, Marília Garcia, Ricardo Rizzo, Leonardo Marona, Manoel Ricardo de Lima, Diana Junkes, Leandro Durazzo, Luci Collin, Rodrigo Garcia Lopes, Fred Spada, Monica de Aquino, Rafael Zacca, Andreev Veiga, Leila Guenther, Edimilson de Almeida Pereira, Julio Mendonça, Simone Brantes, Paulo Dantas, Arthur Lungov, Fabricio Marques, Casé Lontra Marques, Pádua Fernandes, Ana Rusche, Diego Vinhas, Fabio Weintraub, Mariano Marovatto, Ana Estaregui, Ademir Assunção, Heitor Ferraz Mello, Carlito Azevedo, Beatriz Azevedo, Gustavo Galo, Julia Rocha, Bianca Gonçalves, Annita Costa Malufe, Fabiano Calixto, Bruna Kalil Othero, Lorena Martins, Alberto Martins, Júlia Studart, Manuella Bezerra de Melo, Cide Piquet, Ana Paula Pacheco, Marcos Siscar, Jeanne Callegari, Guilherme Gontijo Flores, Miguel Jubé, Lubi Prates, Helena Zelic, Viviane Nogueira e Dirceu Villa. Fiquem de olho neles!

Muito obrigado! E até breve!

 

***

“TINHA PAIXÃO?”

Herberto Helder

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela
a paixão grega

***

DESATENÇÃO

Wislawa Szymborska

Ontem me comportei mal no universo.
Vivi o dia inteiro sem indagar nada,
sem estranhar nada.

Executei as tarefas diárias
como se isso fosse tudo o que devia fazer.

Inspirar, expirar, um passo, outro passo, obrigações,
mas sem um pensamento que fosse
além de sair de casa e voltar para casa.

O mundo podia ter sido percebido como um mundo louco,
e eu o tomei somente para uso habitual.

Nenhum – como – e por quê –
e como foi que aqui apareceu –
e de que lhe servem tantas minúcias buliçosas.

Fiquei como um prego mal pregado na parede
ou
(aqui uma comparação que me faltou).

Uma depois da outra ocorreram mudanças
mesmo no estrito espaço de um pestanejar.

Sobre uma mesa mais nova, por mão um dia mais nova,
o pão de ontem foi cortado de um modo diferente.

Nuvens como nunca, uma chuva como nunca,
pois caíram gotas diferentes.

A Terra girou em torno de seu eixo,
mas num espaço já abandonado para sempre.

Isso durou umas boas 24 horas.
1440 minutos de chances.
86 400 segundos para intuições.

O savoir-vivre cósmico,
embora se cale sobre nós,
ainda assim nos exige algo:
alguma atenção, umas frases de Pascal
e uma participação perplexa nesse jogo
de regras desconhecidas.

(tradução de Regina Przybycien)

***

OS JUSTOS

Jorge Luis Borges

Um homem que cultiva seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra exista música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que em um café do Sur jogam um silencioso xadrez.
O ceramista que premedita uma cor e uma forma.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que leem os tercetos finais de certo canto.
O que afaga um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra exista Stevenson.
O que prefere que os outros estejam certos.
Essas pessoas, que se desconhecem, estão salvando o mundo.

(tradução de Josely Vianna Baptista)

 

Tarso de Melo (1976), poeta e ensaísta, é autor de Íntimo desabrigo (2017), Dois mil e quatrocentos quilômetros, aqui (com Carlos Augusto Lima, 2018) e Rastros (2019), entre outros. Doutor em Filosofia do Direito pela USP. Curador dos ciclos “Vozes Versos” (Tapera Taperá, com Heitor Ferraz Mello), “Passaporte: Literatura” (Goethe-Institut SP, com Marcelo Lotufo), “Algaravia!” (Biblioteca Mário de Andrade) e da série “Notícias de outras ilhas”.


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