Notícias de outras ilhas: Ana Estaregui

Notícias de outras ilhas: Ana Estaregui
(Arquivo pessoal)

 

Ana Estaregui (1987) é poeta, formada em artes visuais e mestranda em literatura e crítica literária. É autora dos livros Chá de jasmim (Patuá, 2014) e Coração de boi (7Letras, 2016), ambos contemplados pelo ProaC de poesia, sendo o último finalista do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional, em 2017. Em 2018 recebeu o Prêmio Governo de Minas de Gerais de Literatura na categoria poesia. Atualmente realiza oficinas livres de criação em arte e literatura.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Adrienne Rich, Kazuo Ohno e um canto-poema marubo. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

Escolhi três textos que falam sobre modos de ver. Sobre modos de ver como mecanismos para saber as coisas.

Agora que o futuro parece ainda mais nebuloso e impalpável, penso que a poesia pode funcionar como uma espécie de aprendizado intuitivo pela forma de ver e propor novos espaços possíveis.

O primeiro texto é um canto-poema marubo em que o interlocutor fala sobre “a tecnologia do conhecimento”. No trecho de onde o poema foi escolhido, fala-se de como os duplos (desenhos-espíritos marcados no peito das pessoas) ensinam a ver e a pensar. É importante lembrar que para a maioria dos povos indígenas a questão da autoria é bastante complexa e nesses casos, conforme comenta o Viveiros de Castro em Araweté: os deuses canibais, é importante variar as ideias de criação e autoria e não abandoná-las em favor de um “coletivismo primitivista”, não descartando a ideia de que um marubo seja um artista. O segundo é um poema da Adrienne Rich sobre uma mesinha de máquina de escrever onde se veem desenhos, como um mapa. O terceiro é um trecho transcrito de uma aula de dança do Kazuo Ohno, retirado do livro Treino e(m) poema, que é um compilado de falas de Ohno sobre os processos de criação em dança. O trecho escolhido também fala sobre um modo de ver.

 

Canto-poema marubo

não é com desenho-água
e nem com desenho-espírito
que eu enxergo
o meu saber desenhado
este desenho que está
diante do coração
com o desenho aí colocado
é que canto
o meu saber desenhado
com este saber
é que ando
assim estou contando

˜e chinã kenerao
ene kenemataki
yove kenemataki
˜e anõ o˜ia
aivo kenese
chinã revõ veyamash
kenekia rakánõ
˜e anõ vanaa
˜e chinã kenenõ
teki vak˜i ikirao
eri rivi yonã

[transcrito e traduzido por Pedro de Niemeyer Cesarino, no livro Oniska: poética do xamanismo na Amazônia, Perspectiva, 2011]

***

Madeira-de-sonho

Adrienne Rich

Na madeira velha, baratucha, riscada, da mesinha da máquina de escrever
há uma paisagem, feita de veios, que só uma criança pode ver
ou o eu mais velho da criança,
uma mulher sonhando quando devia estar a bater à máquina
o último relatório do dia. Se isto fosse um mapa,
pensa ela, um mapa decretado para memorizar
podendo ela talvez percorrê-lo, ele mostra
cordilheira atrás de cordilheira esbatendo-se no deserto nebulento,
aqui e além um sinal de aquíferos
e um possível bebedouro. Se isto fosse um mapa
seria o mapa da última idade da sua vida,
não um mapa de escolhas mas um mapa de variações
sobre a escolha maior. Seria o mapa pelo qual
ela poderia ver o fim das escolhas turísticas,
de distâncias azuladas e arroxeadas de romantismo,
pelo qual ela reconheceria que a poesia
não é revolução mas uma forma de saber
por que tem de vir a revolução. Se esta mesinha de madeira baratucha,
produzida em massa, vinda da Companhia de Gás de Brooklyn,
produzida em massa porém duradoura, presente agora aqui,
é o que é porém um mapa-de-sonho
tão renitente, tão simples,
pensa ela, o material e o sonho podem juntar-se
e isso é o poema e isso é o relatório retardatário.

[traduzido por Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade, no livro Uma Paciência Selvagem”, Editora Cotovia, 2008]

***

Treino e(m) poema (um trecho)

Kazuo Ohno

Os olhos, abertos assim. Quando o espírito,
de leve, foge por eles, lá de fora chega algo
que se assemelha a um pássaro, um pássaro
feito de espírito – será que ele conseguirá
penetrar no seu espírito sem dificuldade?
Seus olhos estão prontos para permitir sua
entrada? Quando o pássaro está prestes
a entrar, será que você dança com olhos que
o acolhem? Sempre em movimento, com
leveza – é preciso dançar com leveza para
que ele seja acolhido. Como se houvesse
uma porta de entrada e saída do espírito,
uma porta fundamental. Será que o que
nasce com isso é a sua alegria ou a sua
tristeza? O que se passa? No seu ir e vir,
o pássaro bate as asas – é a sua alma que
bate asas de alegria? Ou seria de tristeza?
A realidade muda a todo instante, não é
mesmo? Cuide bem de seus olhos, existem
danças assim, só de olhos. Veja bem, há todo
um mundo que é apenas deles. Então é isso,
vamos tentar com olhos assim.

[traduzido por Tae Suzuki, no livro Treino e(m) poema, N-1 Edições, 2016]


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