Notícias de outras ilhas: Annita Costa Malufe

Notícias de outras ilhas: Annita Costa Malufe
A poeta Annita Costa Malufe (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Annita Costa Malufe (São Paulo, 1975) é poeta; autora de seis livros de poemas, dentre os quais: Quando não estou por perto (7Letras/ Petrobras, 2012) e Um caderno para coisas práticas (7Letras, 2016). É professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP e pesquisadora do CNPq. É doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp e publicou os ensaios Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (Annablume/ Fapesp, 2006) e Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (7Letras/ Fapesp, 2011).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Antonin ArtaudA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

Estamos em um tempo escuro, como se habitássemos uma fenda, um momento de suspensão e quebra. Não sabemos o que se passa, muito menos o que vai se passar. É hora de voltar os olhos para os mais radicais, aqueles que souberam ouvir a voz do abismo. O ponto zero. O fim que pode ser recomeço. O quase-vazio, onde murmuram as vozes ainda em mistura, muito antes de haver sujeitos. Tenho lido muito Antonin Artaud, e não me ocorre outro para indicar. As traduções são de Cláudio Willer, em Escritos de Antonin Artaud (L&PM, 1983).

 

***

Tutuguri: o Rito do Sol Negro

E lá embaixo, no pé da encosta amarga,
cruelmente desesperada do coração,
abre-se o círculo das seis cruzes
bem lá embaixo
como se incrustada na terra amarga
desincrustada do imundo abraço da mãe
que baba.

A terra do carvão negro
é o único lugar úmido
dessa fenda de rocha.

O Rito é o novo sol passar através de sete pontos antes de explodir no orifício da terra.

Há seis homens,
um para cada sol
e um sétimo homem
que é o sol
cru
vestido de negro e carne viva.

Mas este sétimo homem
é um cavalo,
um cavalo com um homem conduzindo-o.

Mas é o cavalo
que é o sol
e não o homem.

No dilaceramento de um tambor e de uma trombeta longa
estranha,
os seis homens
que estavam deitados
tombados no rés do chão,
brotaram um a um como girassóis,
não sóis
porém solos que giram,
lótus d’água,
e a cada um que brota
corresponde, cada vez mais sombria
e refreada
a batida do tambor
até que de repente chega a galope, a toda velocidade
o último sol
o primeiro homem,
o cavalo negro com um
homem nu,
absolutamente nu
e virgem
em cima.

Depois de saltar, eles avançam em círculos crescentes
e o cavalo em carne viva empina-se
e corcoveia sem parar
na crista da rocha
até os seis homens
terem cercado
completamente
as seis cruzes.

Ora, o tom maior do Rito é precisamente
A ABOLIÇÃO DA CRUZ

Quando terminam de girar
arrancam
as cruzes do chão
e o homem nu
a cavalo
ergue
uma enorme ferradura
banhada no sangue de uma punhalada.

***

O Pesa-Nervos (trecho)

Toda escrita é porcaria.
Todos aqueles que saem de um lugar qualquer, para tentar explicar seja lá o que lhes passa no pensamento, são porcos.
Toda gente literária é porca, especialmente essa do nosso tempo.
Todos os que possuem pontos de referência no espírito, quero dizer, de um lado certo da cabeça, sobre lugares bem demarcados do cérebro; todos aqueles que são mestres da língua; todos aqueles para quem as palavras têm sentido; todos aqueles para quem existem elevações da alma e correntes do pensamento, aqueles que são o espírito da sua época e que nomeiam essas correntes do pensamentos; penso nas suas mesquinhas atividades precisas e nesse ranger de autômatos vomitado para todos os lados por seu espírito;
– são porcos.
Aqueles para os quais certas palavras têm sentido e certas maneiras de ser; aqueles que têm tão boas maneiras; aqueles para quem os sentimentos podem ser classificados e que discutem um grau qualquer das suas hilariantes classificações, aqueles que ainda acreditam em “termos”; os que mexem com as ideologias de destaque na época; aqueles cujas mulheres falam tão bem, e suas mulheres também, que falam tão bem, e falam das tendências da sua época; os que ainda acreditam numa orientação do espírito; os que seguem caminhos, que acenam com nomes, que fazem gritar as páginas dos livros;
– esses são os piores porcos. […]

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Van Gogh: o Suicidado Pela Sociedade (trechos)

Pode-se falar da boa saúde mental de van Gogh, que em toda sua vida apenas assou uma das mãos e, fora disso, limitou-se a cortar a orelha esquerda numa ocasião.
num mundo no qual diariamente comem vagina assada com molho verde ou sexo de recém-nascido flagelado e triturado,
assim que sai do sexo materno.
E isso não é uma imagem, mas sim um fato abundante e cotidianamente repetido e praticado no mundo todo.
E assim é que a vida atual, por mais delirante que possa parecer esta afirmação, mantém sua velha atmosfera de depravação, anarquia, desordem, delírio, perturbação, loucura crônica, inércia burguesa, anomalia psíquica (pois não é o homem, mas sim o mundo que se tornou anormal), proposital desonestidade e notória hipocrisia, absoluto desprezo por tudo que tem uma linhagem
e reivindicação de uma ordem inteiramente baseada no cumprimento de uma primitiva injustiça;
em suma, de crime organizado.
Isso vai mal porque a consciência enferma mostra o máximo interesse, nesse momento, em não recuperar-se da sua enfermidade.
Por isso, uma sociedade infecta inventou a psiquiatria, para defender-se das investigações feitas por algumas inteligências extraordinariamente lúcidas, cujas faculdades de adivinhação a incomodavam.

Gérard de Nerval não estava louco, mas o acusaram de estar louco para desacreditar certas revelações fundamentais que estava em vias de fazer;
e, além de acusá-lo, certa noite golpearam sua cabeça, golpearam-no fisicamente para que esquecesse os fatos monstruosos que ia revelar e que, por causa deste golpe, passaram do plano mental para o plano supranatural, pois a sociedade toda, conjurada contra sua consciência, mostrou-se naquele momento suficientemente forte para obrigá-lo a esquecer sua verdade.
Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III.
Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma gravitação depois da passagem de van Gogh pela Terra.
Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a van Gogh.
Diante da lucidez ativa de van Gogh, a psiquiatria nada mais é que um antro de gorilas obcecados e perseguidos que só dispõem de uma ridícula terminologia para aplacar os mais espantosos estados de angústia e asfixia humana,
uma terminologia digna dos seus cérebros tarados.
Com efeito, não existe psiquiatra que não seja um erotômano declarado.
E não creio em exceções à regra da inveterada erotomania dos psiquiatras. …………………………………………………………………………………………………………
E o que é um autêntico louco?
É um homem que preferiu ficar louco, no sentido socialmente aceito, em vez de trair uma determinada idéia superior de honra humana.
Assim, a sociedade mandou estrangular nos seus manicômios todos aqueles dos quais queria desembaraçar-se ou defender-se porque se recusavam a ser seus cúmplices em algumas imensas sujeiras.
Pois o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis.
Nesse caso, a reclusão não é sua única arma e a conspiração dos homens tem outros meios para triunfar sobre as vontades que deseja esmagar.
Além dos feitiços menores dos bruxos de aldeia, há as grandes sessões de enfeitiçamento global das quais participa, periodicamente, a consciência em pânico.
Assim, por ocasião de uma guerra, de uma revolução, de um transtorno social ainda latente, a consciência coletiva é interrogada e se questiona para emitir um julgamento.
Essa consciência também pode ser provocada e despertada por certos casos individuais particularmente flagrantes.
Assim foi que houve feitiços coletivos nos casos de Baudelaire, Edgar Poe, Gérard de Nerval, Nietzsche, Kierkegaard, Hölderlin, Coleridge,
e também no caso de van Gogh.
Podem ser feitos durante o dia, mas geralmente são realizados à noite.
Então, estranhas forças são despertadas e levadas à abóbada celeste; a essa espécie de cúpula sombria que, sobre a respiração da humanidade, constitui a venenosa hostilidade do espírito maligno da maioria das pessoas.
É assim que as poucas pessoas lúcidas e de boa vontade que se debatem sobre a terra já se viram, em certas horas da noite ou do dia, tragadas pela profundeza de autênticos pesadelos em vigília e rodeadas por uma poderosa sucção, pela poderosa opressão tentacular de uma espécie de magia cívica que logo será vista aparecendo nos costumes de modo mais manifesto. […]


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