Notícias de outras ilhas: Miguel Jubé

Notícias de outras ilhas: Miguel Jubé
(Foto: Arquivo pessoal)

 

miguel jubé (1987-) é natural de Goiânia. Concentra seus estudos em poesia luso-brasileira, estética e edição integrada à impressão. É doutor em Estudos Literários (UFG), editor e produtor gráfico. recebeu o Prêmio Literário AICL Açorianidade (2014) por seu poemas de minimemórias (Porto, Calendário de Letras, 2015/Goiânia, Caminhos, 2015). publicou ao final de 2017 seu segundo livro de poemas, eugênio obliterado, pela Editora da UFG, e no ano seguinte recebeu o prêmio Troféu Goyazes Leodegária de Jesus, da Academia Goiana de Letras, pela produção poética.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Emanuel Félix e Joséphine BaconA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

nenhum homem é uma ilha. mas ele pode ser-estar uma ilha, inda mais se for dos Açores, essa coisa carregada de mistério secular, entre tantas migrações, entre ser rota e ser rotulada – umas ilhas. de Angra do Heroísmo, da ilha Terceira, nos Açores, veio ao mundo de língua portuguesa e brasileira a poesia de Emanuel Félix (1936-2004). antes de tudo é uma minuciosa restauração da memória – presente passado futuro – necessária; recuperação do sabor das horas inebriadas pelas próprias horas – o sabor amarelecido do tempo no espaço, e o sabor maior sentido à sua descoberta. este não precisa de tradução. a poesia completa deste poeta fenomenal, que era restaurador de profissão, chega ao Brasil no começo de 2021 pela martelo casa editorial. o poema de que lanço mão, “Five o’clock tea”, foi publicado em A palavra, o açoite (1977), e dialoga com o poema homônimo de outro açoriano, de tempos anteriores, Vitorino Nemésio. aqui temos quase uma ‘île en abîme”.

nenhum homem é uma ilha. mas um indígena não é homem – assegura my captain. e quão pior se for UMA indígena?! Joséphine Bacon (1943-), do povo Innus, situado em Pessamit, no Canadá, é documentarista e tradutora, e escreve em francês e em innu-aimun. é uma poeta de uma potência incrível, parecendo sua voz emergir mesmo das forças ancestrais de sua terra. os dois poemas de que lanço mão, ambos sem título, são tradução minha do francês e estão no seu primeiro livro de poemas, Galhos que contam [Bâtons à message] (2009). a poeta chega ao Brasil no ano próximo pela mesma casa editorial. sua maturidade de escrita, cultivada em guarda durante 66 anos, nos reverbera a voz de uma anciã, nos chama à sua sabedoria de viver entre os povos originários e o homem branco, fazendo o constante e delicado aporte entre as duas culturas.

 

Five o’clock tea

Emanuel Félix

Coisa tão triste aqui esta mulher
com seus dedos pousados no deserto dos joelhos
com seus olhos voando devagar sobre a mesa
para pousar no talher
Coisa mais triste o seu vaivém macio
p’ra não amachucar uma invisível flora
que cresce na penumbra
dos velhos corredores desta casa onde mora

Que triste o seu entrar de novo nesta sala
que triste a sua chávena
e o gesto de pegá-la

E que triste e que triste a cadeira amarela
de onde se ergue um sossego um sossego infinito
que é apenas de vê-la
e por isso esquisito

E que tristes de súbito os seus pés nos sapatos
seus seios seus cabelos o seu corpo inclinado
o álbum a mesinha as manchas dos retratos

E que infinitamente triste triste
o selo do silêncio
do silêncio colado ao papel das paredes
da sala digo cela
em que comigo a vedes

Mas que infinitamente ainda mais triste triste
a chávena pousada
e o olhar confortando uma flor já esquecida
do sol
do ar
lá de fora
(da vida)
numa jarra parada

***

me tornei bela
para que a gente note
a medula dos meus ossos,
sobrevivente de uma história
que não se conta mais.

***

Somos raros
somos ricos

como a terra
nós sonhamos.

Joséphine Bacon
(trad. miguel jubé)


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