Notícias de outras ilhas: Bianca Gonçalves

Notícias de outras ilhas: Bianca Gonçalves
A escritora Bianca Gonçalves (Foto: Divulgação)

 

Bianca Gonçalves é pesquisadora, revisora, professora e escritora. Faz mestrado na USP, onde também fez o bacharelado e a licenciatura em Letras. Publicou no ano passado o livro de poemas como se pesassem mil atlânticos, pela editora Urutau. Escreve crônicas, contos, ensaios e resenhas no blog “Bianca não é branca”, que mantém desde 2016.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Mahmoud Darwich, Warsan Shire e Lica SebastiãoA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da escritora abaixo.

 

Busco um isolamento que não me faça dobrar o corpo. O isolamento que eu já praticava, incentivado pela leitura, escrita e pesquisa, me deu muitas dores de pescoço, punhos e costas, que são sim ossos e destroços do ofício, mas que podem (e devem) ser intercalados com exercícios. Eu escolhi a dança por razões rebolativas carregadas nos quadris dos meus avós, mas você pode se apegar a um tapete de yoga, a luvas de boxe, a uma bicicleta ergométrica. A minha dica de quarentena é essa.

Ainda, aproveito o espaço para sugerir três leituras que residem do outro lado do Atlântico: o primeiro poema é de Mahmoud Darwich, palestino ainda pouco conhecido do público brasileiro. O poema foi traduzido pelo pesquisador (e também meu amigo) Marco Calil, que fez um trabalho bonito ao verter do árabe para o português brasileiro parte da obra de Darwich (sairá em breve pela editora Tabla). Em seguida, deixo um poema de Warsan Shire, nascida no Quênia, famosa pelos poemas do álbum visual Lemonade, de Beyoncé, que eu pude traduzir durante a quarentena junto do Marco. E, por último, os versos da moçambicana Lica Sebastião, cujo livro de terra, vento e fogo, publicado pela editora Kapulana, vale muito a leitura.

 

***

quem sou eu sem exílio?

Mahmoud Darwich

um forasteiro à beira-rio, como o rio… religa-me
a teu nome água. nada me retorna do meu remoto
à minha palmeira: nem paz nem guerra.
nada
me reingressa nos Evangelhos. nada
nada… ressurge da ressaca
e do rio, dentre Nilo e Eufrates.
nada
me vem dos barcos do Faraó.
nada
me transporta ou me porta ideias: sem saudades
nem promessas. o que farei? o que
farei sem exílio – a noite longa
olhando a água?

religa-me
a teu nome
água
nada me tirando das borboletas do sonho
para o real: nem terra nem fogo. o que
farei sem rosas de Samarkand? o que
farei em tablados que esfolam coro em pedra
de lua? ficamos leves como nossos pousos
em ventos remotos. ficamos amigos de criaturas
estranhas entre nuvens… ficamos imunes à
gravidade do planeta da identidade. o que faremos… o que
faremos sem exílio – a noite longa
olhando água?

religa-me
a teu nome
água
só me resta tua pessoa, dela só me resta
a minha, forasteiro que massageia as coxas da forasteira: ai,
forasteira! o que faremos do que resta de nós
de paz… de descanso entre dois mitos?
nada nos levando: sem caminho nem casa.
esse caminho sempre foi assim
desde o princípio, ou nossos sonhos encontraram o alazão
mongol nas montanhas e por ele nos trocaram?
o que faremos disso
o que
faremos sem
mesmo
o próprio exílio?

(tradução de Marco Calil)

***

Beleza

de Warsan Shire

Minha irmã mais velha lava entre as pernas, o cabelo dela
um rosário de cachos. Quando tinha a minha idade, ela roubou
o marido da vizinha, o nome dele em brasa na pele dela
Por semanas ela cheirava a perfume barato e carne podre.

São 4 da manhã. e ela pisca pra mim, encostada na pia
seus peitinhos tomados de marcas.
Ela sorri, faz uma bola de chiclete, deixa o aviso
meninos são haram, nunca se esqueça disso.

Tem noites que ouço gemidos de seu quarto.
Rezamos a Sura da Vaca para abafá-los.
O que lhe saísse da boca ia a sexo soar.
A mãe não deixava o nome de Deus ela usar.

(tradução de Bianca Gonçalves e Marco Calil)

***

20

Lica Sebastião

Os meus versos estão impregnados
do teu suor, da tua luz e voz…
e da tua obstinação.
Tens medo que saibam que és tu.
Não te apoquentes, amor.
Esses de quem receias críticas e censuras
não vão nunca aos livros.
Têm enjoos da palavra escrita
e do sabor dos beijos puros que te dei.
Sabes, se lesses os meus versos,
olhariam para ti com inveja disfarçada
do tanto que te quero bem
e cobiçariam o teu nome bordado em mim
com fios de ouro e com enfeites
de pequenas penas de ave exótica.


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