Notícias de outras ilhas: Thiago Ponce de Moraes

Notícias de outras ilhas: Thiago Ponce de Moraes
O poeta Thiago Ponce (FOto: Caligari Escobar García)

 

Thiago Ponce de Moraes, 33, é poeta, tradutor e professor, autor de, entre outros, Dobres sobre a luz (2016, Lumme Editor, finalista do prêmio Jabuti) e Glory Box (2016, Carnaval Press, coletânea bilíngue traduzida pelo poeta britânico Rob Packer). Seu novo livro, Espacelamentos, será lançado pela Gralha Edições e trará desenhos de Priscilla Menezes.

No âmbito das narrativas, tem lido Marguerite Yourcenar, escritora francesa nascida na Bélgica, e aprendido com sua linguagem potente e poética em Memórias de Adriano. Vem lendo também Anjo noturno, contos daquele que, em sua opinião, é um dos narradores mais brilhantes do nosso tempo e das nossas letras, Sérgio Sant’Anna.

Grace, de Jeff Buckley, e Five leaves left, de Nick Drake, acompanham a quarentena em looping nos ouvidos. Piazzolla, Elza Soares, Björk e Cartola também participam do isolamento.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica a leitura de Paul Celan, Sebastião Alba e Yu Xuanji, apresentados recentemente na Poemateca, página de poesia no Instagram. Antes de ir para os poemas prontamente, deixa uma citação de Celan – retirada de sua Alocução em Bremen – que tem muito a ver com o movimento suscitado pela leitura de tão variadas ilhas:

“O poema, sendo como é uma forma de manifestação da linguagem e, por conseguinte, na sua essência dialógico, pode ser uma garrafa, lançada ao mar na convicção – decerto nem sempre muito esperançada – de um dia ir dar a alguma praia, talvez a uma praia do coração. Também nesse sentido os poemas estão a caminho – têm um rumo.” Leia os poemas e os comentários do poeta abaixo.

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DO AZUL que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.
Vejo e bebo de teu rastro:
deslizas pelos meus dedos, pérola, e cresces!
Cresces como todos os esquecidos.
Deslizas: o granizo negro da melancolia
cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida.

 

Paul Celan (1920-1970), poeta romeno de língua alemã radicado na França, é uma das vozes centrais não só da poesia europeia do pós-guerra, mas também da poesia ocidental escrita no século 20. O poema acima está em seu livro de 1952, Ópio e memória (tradução brasileira de Claudia Cavalcanti para Mohn und Gedächtnis, incluído na antologia Cristal, publicada pela editora Iluminuras). Esse é um dos poemas de Celan que mais me comovem, que mais me deslocam. O poema parece manter aberta uma fissura, uma ferida – resguarda sua zona de sombra. E isso não é pouco para um poeta que tem em sua obra poemas como “Fuga sobre a morte”, “Stretto e Salmo”, para citar alguns, que nos legam um ensinamento sensível e reinauguram a nossa capacidade de leitura. O primeiro verso tenciona esgarçar a linguagem ao limite do inteligível, do imaginável: um ainda-não, um estar a caminho, inabordável em sua travessia. E todo o poema vai lidando com gestos e cores nas duas extremidades, do preto ao branco, do rosto prestes ao encontro ou à memória até o aceno de despedida.

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Epílogo

Sebastião Alba

Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.

O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.

Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.

 

Sebastião Alba foi um poeta moçambicano nascido em Portugal em 1940(-2000). O poema aqui apresentado foi retirado do livro A noite dividida, publicado pela editora portuguesa Assírio e Alvim, que colige três livros: O ritmo do presságio, A noite dividida e O limite diáfano; este último sendo o livro em que o poema apareceu pela primeira vez. A poética de Alba é muito poderosa: dono de um arsenal imagético singular e de uma sintaxe idem, o poeta oferece, nesse poema, o que aparenta ser a coincidência de um corpo empírico com aquilo que em si se manifesta artisticamente até sumir, incólume na paisagem, conquanto quase despercebido – um canto, uma poética, uma passagem.

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Pensamentos de melancolia

Yu Xuanji

Folhas caindo, uma a uma, à chuva, ao sol-pôr
Nítida, ascende entre as cordas: voz solitária,
Vívido canto, à falta de amigos, amores
Nunca esmoreças, joga as tristezas ao mar

Às portas do templo, em fila, ricas carruagens
Livros do Tao empilham-se na cama ao léu
Pobres em seus andrajos irão para o céu?
Águas, montanhas: tudo o que há passará

Yu Xuanji foi uma poeta chinesa do século 9 (844-869), considerada uma das principais vozes desta literatura. Sua poesia completa foi publicada no Brasil há alguns anos graças aos esforços do Instituto Confúcio junto à Editora Unesp, por onde a coletânea veio a lume. Sua obra completa compreende 48 poemas e alguns fragmentos, sendo toda ela muito pródiga em recursos formais – que a poeta dominava com maestria. Compartilho o poema acima porque seus versos parecem trazer uma espécie de estoicismo muito bem-vindo no atual momento pelo qual passamos como Humanidade: é preciso não se deixar arrastar pela melancolia, pelo medo, pela dúvida. Além disso, fica o ensinamento do Tao, que encontra ressonância também no budismo: tudo é impermanência. Dizendo melhor, com os dois versos-síntese deste poema, os versos que encerram cada estrofe: Nunca esmoreças, joga as tristezas ao mar (…)/Águas, montanhas: tudo o que há passará.


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