Notícias de outras ilhas: Adriane Garcia

Notícias de outras ilhas: Adriane Garcia
A poeta Adriane Garcia (Foto: Divulgação)

 

Adriane Garcia, 47, é poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018) e Arraial do Curral del Rey – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena -, indica poemas de Prisca Agustoni, Otto Leopoldo Winck e Tadeu Sarmento. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo. A seção tem curadoria de Tarso de Melo.

 

Em Ensaio sobre a cegueira, José Saramago coloca um momento em que as pessoas, cegas, já isoladas, confrontadas com sua desumanização, ouvem uma música no rádio e, por instantes, recuperam algo valioso. Alguns choram.

Em A metamorfose, Kafka nos dá a cena de um homem que, em um processo agudo de desumanização, vê-se ameaçado de perder seu único objeto de arte, uma pintura na parede de sua solitária. Ele se joga na frente do objeto. Sempre foi para mim uma das cenas mais desesperadas do livro.

É interessante como fica mais evidente a importância da arte, quando nossa humanização/desumanização é colocada em xeque.

Escolhi estes três poemas que considero alimento para estes tempos. O primeiro, de Prisca Agustoni, por descrever a nossa noite; o segundo, de Otto Leopoldo Winck, por nos lembrar que nem para os impérios há certeza; o terceiro, de Tadeu Sarmento, por mostrar que a arte é uma tocha acesa.

 

***

Prisca Agustoni

A escuridão escondeu o bairro, a vista sobre a mesma eterna esquina.
Engoliu tudo sem hesitação: os insetos, a calçada, o lixo, a grama e as
margaridas, a fachada das casas, o azul das persianas, as eras invasivas,
as sacadas, as pompas nos telhados, os fios elétricos que brilham como
guilhotinas e acima, bem acima disso tudo, o cardume do céu.
Apagou tudo, tudo amontoado atrás de uma cortina espessa.
Nosso olhar também foi devorado, esquivando-se atrás da melancolia
da noite.
Ninguém tem culpa, é claro, mas isso não nos alivia da tristeza.

A escuridão engoliu a vida essa noite, e ela não disse se e nem quando
irá devolvê-la.

***

476 d.C

Otto Leopoldo Winck

fica decidido:
não haverá
segunda época

o monopólio
dos ímpios
nos é negado

roto
o louco
não dançará mais na avenida

mas o cego continuará
a pedir moedas
na esquina do shopping

perdi os ingressos
do cinema
perdi as chances
do remorso

fica
decretado:
o choro é livre
não inútil
porém ridículo

rememoro
no fim
a manhã primeva:

a sagração
o sangramento
da terra
sob o disco
ático
de apolo

agora
quando a noite cai
e todos os bêbados são pardos
meus olhos se fecham sem ternura
mas com lágrimas

caiu a grande babilônia

a mesa está posta
com a cabeça do batista
o sol se põe
sobre o nilo
e as águas do eufrates
são vermelhas
como sangue

hermes trimegisto ri

não haverá
segunda chance:
o ocidente
era um mito
mas não um acidente

***

Práxis

Tadeu Sarmento

Com a queda de energia
Que ocorreu durante o ensaio
Da orquestra, Leon Schultz
Maestro e sobrevivente do
Holocausto, conduziu seus
Músicos pela escuridão total
Depois de acender uma tocha
Com as partituras de Vivaldi.


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