Notícias de outras ilhas: Jeanne Callegari

Notícias de outras ilhas: Jeanne Callegari
(Foto: Liliane Callegari)

 

Jeanne Callegari (Uberaba/MG, 1981) é poeta, jornalista e produtora cultural. Publicou os livros Amor eterno 2 (Pitomba! e Garupa, 2019), Botões (Corsário-Satã, 2018) e Miolos frescos (Patuá, 2015), todos de poemas, e Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável (Seoman, 2008), perfil biográfico do autor gaúcho. Em suas performances ao vivo, trabalha com os cruzamentos entre palavra, voz, ruídos e paisagens sonoras. É curadora, organizadora e poeta residente da Macrofonia!, noite de poesia e audiovisual ao vivo realizada em São Paulo desde 2017.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica textos de Sean Bonney, Claudia Rankine e Corsino Fortes A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

Fazer exercícios, falar com os amigos, cozinhar, apurar a raiva. Coisas que amenizam os dias de isolamento. Importante manter o corpo são e a ira afiada, dosar as notícias, saber o que se passa sem se deixar consumir. Se encontrar nos gestos mínimos dos dias, um olho nas lutas de dentro e o outro pra fora, na ação. No momento em que escrevo, cidades americanas estão em chamas depois da execução de George Floyd, e o movimento negro e as torcidas organizadas no Brasil puxam atos de oposição ao racismo e ao fascismo. Tempo de perguntar: qual nosso lugar nisso tudo? Quebrar vidraças e atear fogo em edifícios não é violência. Apertar os botões de um elevador e deixar uma criança de cinco anos sozinha nele, sim.

Os poetas abaixo têm me ajudado a endurecer sem perder a ternura.

Sean Bonney (1969-2019) foi um poeta e anarquista inglês. Conheci seu trabalho de forma triste, ao ler na internet um comentário sobre sua morte, em novembro de 2019, em um acidente. Semanas depois, quando policiais causaram a morte de nove adolescentes em um baile funk, em São Paulo, traduzi um de seus poemas, ACAB: a nursery rhyme. O texto aparece em seu antigo blog e em seu livro Letters against the firmament (“cartas contra o firmamento”), ainda sem edição no brasil.

Claudia Rankine (1963) é uma poeta, ensaísta e dramaturga jamaicana radicada nos estados unidos. Trafegando entre a poesia e o ensaio, seu livro citizen (“cidadã”) trata do racismo a partir de uma perspectiva pessoal, com relatos sóbrios e carregados de significado sobre microagressões cotidianas sofridas por ela e pessoas que entrevistou. Agressões cometidas por pessoas brancas, algumas delas mulheres, amigas, supostamente progressistas. vencedora de diversos prêmios, a obra foi vertida ao português pela jornalista, tradutora e poeta Stephanie Borges e será lançada em breve pela editora Jabuticaba. os textos abaixo são uma versão atualizada de fragmentos publicados na revista serrote e no site pontes outras.

Corsino Fortes (1933-2015) foi um poeta cabo-verdiano que conheci também há pouco tempo, ao ouvir trechos de seu livro a cabeça calva de deus em um encontro na casa de um amigo. De imediato fui capturada por suas imagens marcantes e sua musicalidade, seu tom épico e sua inventividade. a Cabeça calva de deus é o nome do livro que reúne a trilogia composta por Pão & fonema, árvore & tambor e Pedras de sol & substâncias. A obra saiu no Brasil em 2010 pela editora Escrituras. Na revista Buala é possível ler um artigo de Cláudia Fabiana sobre o poeta.

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ACAB*: uma canção de ninar

Sean Bonney

em vez de “eu te amo”, diga foda-se a polícia / em vez de
“as chamas do paraíso” diga foda-se a polícia, não diga
“recrutamento” não diga “trótski” diga foda-se a polícia
em vez de “despertador” diga foda-se a polícia
em vez de “meu trajeto pro trabalho” em vez de
“sistema eleitoral” em vez de “vento solar infinito” diga foda-se a polícia
não diga “não compreendo mais minhas visões” não diga
“essa tão maldita faculdade humana” não diga
“suicidado pela sociedade” diga foda-se a polícia / em vez de “o movimento
das esferas celestiais” diga foda-se a polícia / em vez de
“o globo brilhante da lua” em vez de “a rainha mab” diga
foda-se a polícia / não diga “débito automático” não diga “filie-se ao partido”
diga “teu sono beneficia o patrão” e depois foda-se a polícia
não diga “hora do rush” diga foda-se a polícia / não diga
“aqui os passos que dei para encontrar emprego” diga foda-se a polícia
não diga “café duplo coado” diga foda-se a polícia / em vez de
“a força gravitacional da terra” diga foda-se a polícia / em vez de
“faça o novo” diga foda-se a polícia
todas as outras palavras estão enterradas ali
todas as outras palavras estão ditas ali / não diga “uns trocados”
diga foda-se a polícia / não diga “feliz ano novo” diga foda-se a polícia
talvez diga “reescrever o calendário” mas depois disso, imediatamente
depois disso diga foda-se a polícia / em vez de “a pedra filosofal” em vez de
“casamento dos famosos” em vez de “o trabalho de transmutação” em vez de “amor
à beleza” diga foda-se a polícia / não diga “aqui está meu novo poema”
diga foda-se a polícia
diga não há paz sem justiça e depois foda-se a polícia

(Trad. Jeanne Callegari)

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Cidadã (fragmentos do 1º capítulo)

Claudia Rankine

Certos momentos mandam adrenalina para o coração, secam sua boca, e travam seus pulmões. Como um trovão eles te afogam no barulho, não, como um raio eles te atingem atravessando a laringe. Tosse. Depois que aconteceu eu perdi as palavras. Não foi você quem disse isso? Você não disse isso para uma amiga íntima que no início da sua amizade, quando distraída, teria chamado você pelo nome da empregada negra dela? Você concluiu que vocês eram as duas únicas pessoas negras na vida dela. Eventualmente ela parou de fazer isso, ainda que ela nunca tenha reconhecido o lapso. E você nunca chamou a atenção dela para isso (por que não?) e ainda assim, não esquece. Se isso fosse uma tragédia doméstica, e poderia muito bem ser, essa seria sua falha fatal — sua memória, reservatório dos seus sentimentos. Você se sente magoada porque é aquele momento “todas as pessoas negras se parecem”, ou porque você está sendo confundida depois de ser tão próxima dessa outra?

Porque você tem um status premium concedido por causa de um ano cheio de viagens, você já está acomodada em um assento na janela pela United Airlines, quando uma menina e a mãe dela chegam na sua fileira. A menina, analisando você, diz para a mãe, esses são os nossos lugares, mas não é isso que eu esperava. A resposta da mãe é quase inaudível — Estou vendo, ela diz. Vou sentar no meio.

Uma mulher que você não conhece se convida para almoçar com você. Você está visitando o campus dela. No café, as duas pedem salada Cesar. Essa coincidência não é o começo de nada porque ela imediatamente comenta que ela, o pai dela, o avô dela e você, todos frequentaram a mesma universidade. Ela queria que o filho dela fosse para lá também, mas por causa das ações afirmativas ou algo das minorias — ela não sabe do que eles estão chamando essas coisas hoje em dia, eles não iam acabar com isso ? — o filho dela não foi aceito. Você não tem certeza se deveria se desculpar por essa falha no programa de tradição familiar da universidade na qual se formou; em vez disso você pergunta onde ele foi parar. A instituição de prestígio que ela menciona não parece amenizar a irritação dela. Essa conversa, com razão, acaba com o seu almoço. A salada chega.

(Trad. Stephanie Borges)

***

Chão do povo chão de pedra

Corsino Fortes

O rosto de teu filho brada pelo mar
Como panelas mortas como panelas vivas
mortas
vivas
nos fogões apagados

Pilões calados fogões apagados
No vulcão e na viola do teu coração

Boca do povo no fogo dos nossos fogões apagados

Chão do povo chão de pedra!
O sol ferve-te o sol no sangue
E ferve-me o sangue no peito
Como o fogo e a pedra no vulcão do Fogo

De sol a sol
abriste a boca

Secos os pulmões
neles cresce-me
a lenha do mato

De sol a sol
os meus ossos são verdes
os teus ossos são plantas
Como a fruta-pão o tambor e o chão

De sol a sol
gritei por Rimbaud ou Maiakovsky
deixem-me em paz


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