Notícias de outras ilhas: Paulo Dantas

Notícias de outras ilhas: Paulo Dantas
O poeta e professor Paulo Dantas (Foto: Luzia Maninha)

 

Paulo Dantas nasceu em Santa Luzia, sertão da Paraíba, em 1984, e vive em São Bernardo do Campo, São Paulo, desde 2005. É poeta e professor, e é também autor de a butija dos dizer (coleção Mimo, Alpharrabio, 2018) e da proposta poética do espetáculo Mundo di Versos Incarnados, entre outros.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Bertolt Brecht, Patativa do Assaré e Dalila Teles Veras. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

São tempos difíceis. Uma pandemia, desembestada à nossa procura, nos encontra socados no repugnante, e muito mais letal, governo bolsonarista, emergente dos esgotos mais fétidos da nossa política. Não fossem as gentes que se puseram ao meu lado nas tantas lutas travadas nesta quarentena, a iminente hecatombe seria demais para a minha cabeça. Acontece que, para o meu total regozijo, além do Bertolt Brecht, do Patativa do Assaré e da Dalila Teles Veras, desembarcaram aqui na ilha: a Lilia Schwarcz, que me abriu os olhos sobre o autoritarismo brasileiro; a Carolina Maria de Jesus, descrevendo o quarto de despejo, com contundentes relatos do seu diário de uma favelada; o João Ferreira de Lima, narrando as proezas de João Grilo; o Paulo Leminski, dizendo que en la lucha de clases / todas las armas son buenas / piedras / noches / poemas; o Carlos Drummond de Andrade, com o sentimento do mundo, brincando com o João Miguel, meu filho; os Racionais MC’s mandando um salve pra geral que tá sobrevivendo no inferno; a Luzia Maninha, entre uma espera e um clique, registrando todos os momentos; o Tarso de Melo, me botando nos rastros da revista Cult; e, completando o rolê, o Ricardo Antunes, com uma voz bonita e agradável, explicando que “[…] se por um lado necessitamos do trabalho humano e de seu potencial emancipador e transformador, por outro devemos recusar o trabalho que explora, aliena e infelicita o ser social, tal como o conhecemos sob a vigência e o comando do trabalho abstrato” (O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, Boitempo, 2020, p. 28).

 

Canto das máquinas

Bertolt Brecht

1

Alô, queremos falar com a América
Através do Oceano Atlântico com as grandes
Cidades da América, alô!
Perguntamo-nos em que língua
Deveríamos falar, para que
Nos entendessem
Mas agora temos juntos nossos cantores
Que são compreendidos aqui e na América
E em toda parte do mundo.
Alô, ouçam o que nossos cantores cantam, nossos astros negros
Alô, escutem quem canta para nós…

As máquinas cantam.

2

Alô, estes são nossos cantores, nossos astros negros
Eles não cantam bonito, mas cantam no trabalho
Enquanto fazem luz para vocês eles cantam
Enquanto fazem roupas, fogões e discos
Cantam.
Alô, cantem mais uma vez, agora que estão aqui
Sua pequena canção através do Oceano Atlântico
Com sua voz que todos entendem.

As máquinas repetem seu canto.

Isto não é o vento nas árvores, meu menino
Não é uma canção para a estrela solitária
É o bramido selvagem da nossa labuta diária
Nós o amaldiçoamos e o elegemos
Pois é a voz de nossas cidades
É a canção que em nós cala fundo
É a linguagem que entendemos
Em breve a língua-mãe do mundo.

Em Poemas 1913 – 1956, tradução de Paulo César de Souza, Editora 34, 2012

***

Ingém de ferro

Patativa do Assaré

Ingém de ferro, você
Com seu amigo motô,
Sabe bem desenvorvê,
É muito trabaiadô.
Arguém já me disse até
E afirmou que você é
Progressista em alto grau,
Tem fôrça e tem energia.
Mas não tem a poesia
Que tem um ingém de pau.

O ingém de pau, quando canta,
Tudo lhe presta tenção,
Parece que as coisa santa
Chega em nosso coração
Mas, você, ingém de ferro,
Com este horroroso berro,
É como quem qué brigá,
Com a sua grande afronta
Você tá tomando conta
De todos canaviá.

Do bom tempo que se foi
Faz mangofa, zomba, escarra.
Foi quem espursou os boi
Que puxava na manjarra.
Tôdo suberbo e sisudo,
Qué governá e mandá tudo,
É só quem qué sê ingém.
Você pode tê grandeza
E pode fazê riqueza,
Mas eu não lhe quero bem.

Mode esta suberba sua
Ninguém vê mais nas muage,
Nas bela noite de lua,
Aquela camaradage
De todos trabaiadô.
Um, falando em seu amô
Outro, dizendo uma rima,
Na mais doce brincadêra,
Deitado na bagacêra,
Tudo de papo pra cima.

Êsse tempo que passou,
Tão bom e tão divertido,
Foi você quem acabou,
Esguerado! Esgalamido!
Come, come interessêro!
Lá dos confim do estrangêro
Com seu baruio indecente
Você vem todo prevesso,
Com histora de progresso,
Mode dá desgôsto a gente!

Ingém de ferro, eu não quero
Abatê sua grandeza,
Mas eu não lhe considero
Como coisa de beleza,
Eu nunca lhe achei bonito,
Sempre lhe achei esquisito,
Orgüioso e munto mau.
Até mesmo a rapadura
Não tem aquela doçura
Do tempo do ingém de pau.

Ingém de pau! Coitadinho!
Ficou no triste abandono
E você, você sozinho
Hoje é quem tá sendo dono
Das cana do meu país
Derne o momento infeliz
Que o ingém de pau levou fim,
Eu sinto sem piedade
Três moenda de saudade
Ringindo dentro de mim.

Nunca mais tive prazê
Com muage neste mundo
E o causadô de eu vivê
Como um pobre vagabundo,
Pesaroso, triste e perro,
Foi você ingém de ferro,
Seu safado! Seu ladrão!
Você me dexou à tôa,
Robou as coisinha boa
Que eu tinha em meu coração!

Em Antologia poética, Edições Demócrito Rocha, 2007

***

Homem-tração

Dalila Teles Veras

“Assim devera eu ser
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.”
Formiga Bossa Nova, Alexandre O’Neill / Alain Oulman

recolhem
latas, caixas, vidros, papéis
(miserável quinhão
no latifúndio consumista)

brancaleônicas figuras
recolhem e carregam
(penas – carga brutal)
carregam e caminham
caminham e descarregam
(elas próprias, descartes

menos-valia
não armazenável
ração restrita à hora
incerta e presente)

Em estranhas formas de vida, Alpharrabio/Dobra, 2013


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