Notícias de outras ilhas: Ricardo Rizzo

Notícias de outras ilhas: Ricardo Rizzo
O poeta Ricardo Rizzo (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Ricardo Rizzo (Juiz de Fora, 1981) é autor de Cavalo marinho e outros poemas (Funalfa/Nankin Editorial, 2002), de Conforme a música (plaquete, Espectro Editorial, 2005), País em branco (Ateliê Editorial, 2007), Sobre rochedos movediços: deliberação e hierarquia no pensamento político de José de Alencar (Hucitec/FAPESP, 2012), Estado de despejo (e-galáxia, 2014/Patuá, 2015), Canção do arbítrio (Patuá, 2018) e Estudo para uma execução (plaquete, Galileu Edições, 2019).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Ricardo Aleixo, Augusto dos Anjos e Zulmira Ribeiro Tavares. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

Acredito que, nessa pandemia de Covid-19, fomos colocados, de repente, em campo aberto. Em alguns dias, no Brasil, autoridades vestiram o uniforme de campo do SUS, aprovaram uma renda básica de emergência, novos mecanismos monetários e de financiamento do estado (possibilidade de o Banco Central comprar e vender títulos do Tesouro) e reconheceram, em termos, os limites da “ortodoxia” fiscal. Isso no contexto que é o nosso, e nem precisa ser nomeado. Não imagino que a imposição de realidade por choque externo vá resolver a camisa-de-força em que nos metemos, mas algumas características da doença, a grande possibilidade de que as pessoas sem sintomas transmitam o vírus sem saber e o seu impacto brutal no sistema de saúde, poderiam trazer de volta algumas noções mínimas de cuidado com o outro e revalorização da seguridade e assistência social. De alguma forma lembrei de poemas que me ajudam a pensar sobre esses efeitos e deslocamentos, e sobre o signo da ameaça e da doença em si. O poema de Ricardo Aleixo (em Pesado demais para a ventania, Todavia, 2018) começa dando um giro por cima do famoso ensaio de Susan Sontag (Illness as metaphor, de 1978), para nos colocar, a meu ver, em uma discussão mais sofisticada em relação às operações da doença sobre a linguagem e as possíveis apropriações e transformações dos signos da doença na sociedade. A transformação que Aleixo faz na lógica da reflexão de Sontag tem grande alcance, até por ser fiel à metáfora inicial do texto da norte-americana: a da doença e da saúde como nossa “dupla cidadania”, nossos dois passaportes. A descoberta da doença como metonímia coloca em cena aqueles que são “doentes” de origem e classe, “mineiros duas vezes”, cidadania muito mais concreta, histórica, do que a metáfora de Sontag. Mas o poema vai além, mostra que a consciência dessa cidadania (uma desconfiança, assinalada pela quebra), emergindo na linguagem, na operação de “simplificação” do termo técnico, cria a comunidade daqueles “que ficam” e apreendem, no contágio exogâmico com a linguagem médica com que são designados, a unidade entre o território, a produção extrativista e subordinada, a classe e o seu lugar nesse feixe de relações, que a doença restitui como fronteira entre vida e morte, entre “morrer cedo” e “ficar”. A lembrança do Augusto dos Anjos talvez se dê também por essa capacidade da doença de evocar o limiar vida-morte e suas mediações na linguagem. A pandemia se apresenta muitas vezes numa dança de gráficos, números e coeficientes, além da contagem diária de mortos. A linearidade aritmética da conta do coveiro – entidade à margem do tempo –, “infinita como os próprios números”, nos reconecta com as outras implicações da linguagem matemática da morte, a ideia de que a progressão dos números e a decomposição dos corpos nos une em comunidade, para além do “depois” que os gráficos exponenciais da pandemia prometem. Por fim, a súbita figuração – ou fulguração – da morte no poema de Zulmira Ribeiro Tavares (de Vesúvio, Companhia das Letras, 2011) me impressiona pela precisão com que apresenta e organiza a imagem; pela consciência orgânica do tempo, abrindo-o quase que como em uma autópsia, cuja fatura não é morte (apenas), mas movimento sem empuxo, ruptura com o “antes” e o “igual”.

***

A doença como metonímia

Ricardo Aleixo

Trabalhadores da
St. John del Rey Mining
Company, em Nova Lima,

Minas, gabam-se

da sua origem
(“mineiros duas vezes”).
Mas descon-

fiam que viver
é para nada: morrem
cedo, antes de aprenderem,

p. ex., a soletrar pneumoultra-

microscopicossilicovulvanoconiose
(= silicose, simpli-
ficam os que ficam).

***

Versos a um coveiro

Augusto dos Anjos

Numerar sepulturas e carneiros,
Reduzir carnes podres a algarismos,
Tal é, sem complicados silogismos,
A aritmética hedionda dos coveiros!

Um, dois, três, quatro, cinco… Esoterismos
Da Morte! E eu vejo, em fúlgidos letreiros,
Na progressão dos números inteiros
A gênese de todos os abismos!

Oh! Pitágoras da última aritmética,
Continua a contar na paz ascética
Dos tábidos carneiros sepulcrais:

Tíbias, cérebros, crânios, rádios e úmeros,
Porque, infinita como os próprios números,
A tua conta não acaba mais!

***

Luto

Zulmira Ribeiro Tavares

A chuva passa longe – distante
o raio vai cair no lago.
Vestem-se os peixes de preto para a morte.
Mas primeiro suas escamas relampejam
como nunca antes. Como nada igual.

Primeiro um anzol de fogo
na ponta de uma linha súbita
suspende no ar os peixes com o lago

para os largar de volta
na planície – com estrondo.

O lago se desencrespa e aquieta.
Os peixes,
cobertos de preto para a cerimônia fúnebre,
vagarosos vão passando pela água sem
o empuxo das nadadeiras.
Soltos
como nunca antes. Como nada igual.


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