Notícias de outras ilhas: Manoel Ricardo de Lima

Notícias de outras ilhas: Manoel Ricardo de Lima
Manoel Ricardo de Lima (Foto: Mila Langel van Erven)

 

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou avião de alumínio (Quelônio, com Júlia Studart), Pasolini: retratações (7Letras, com Davi Pessoa), A forma-formante:  ensaios com Joaquim Cardozo [EdUFSC], As mãos [7Letras], Jogo de varetas [7Letras], Falas inacabadas [Tomo, com Elida Tessler], Maria quer o mundo [edições SM], entre outros. Coordena a coleção “Móbile” de mini-ensaios para a Lumme Editor e escreve a coluna Trabalhos no Subsolo na revista Revestrés.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Mário Faustino, Max Martins e Henriqueta Lisboa. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

O poema Assim é o medo, de Henriqueta Lisboa, foi publicado no livro Além da imagem, de 1963. Este é o ponto: antes e depois do visível, antes e depois das imagens, o que nos sobra é o real, acontecimento imparável, quase sempre a surpreender e, ao mesmo tempo, a enganar. E agora diante de um engano imenso, desmesurado e duro, é possível imaginar uma conversa entre o poema de Henriqueta com o de Mário Faustino, No trem, pelo deserto, e o de Max Martins, O animal sorri. Numa reparação, como imaginava Sylvio da Cunha, a ideia de fotografia é a que apresenta uma memória imóvel e elástica, caprichosa ou fiel, entre o mistério e a intuição impalpável, segredo pressentido e música incerta, subterrânea, um diálogo de força com a sombra. Esta é uma pequena série de movimento e erro com algumas imagens fotográficas do invisível: o deserto, o animal e o medo: “mundo inapto”, “febres deste dia” e “estamos longe”.

***

No trem, pelo deserto

Mário Faustino

As vozes frias
Anulam toda chance de existência.
Jogam cartas terríveis
Batem fotografias perigosas
Não temem. Falam. Passam,
Na chacina do raro ostentam sua miséria.

Ninguém veste de verde. Um só
Parece vivo, aberto – e esse dorme.
As aves lentas voam seus presságios
E a brisa morna engendra flores duras
Na secura dos cactos.

Alguém pergunta: “Estamos perto?” E estamos longe
E nem rastro de chuva. E nada pode
Salvar a tarde.

(Só se um milagre, um touro
Surgisse dentre os trilhos para enfrentar a fera
Se algo fértil enorme aqui brotasse
Se liberto quem dorme se acordasse).

***

O animal sorri

Max Martins

O animal sorri. Seus dentes
são rochas
e ruínas
por onde a noite
sem memória desce
sua demência.

Teu corpo (ainda leve)
– indelével sombra
sobra
duma remota juventude
está de volta.
Ninguém te segue, e cega
a ave fere a tarde
te anuncia
às febres desde dia.
Rios se desesperam
pedras agonizam
se torturam
se procuram.

(Virás à jaula
deste animal remanescente
do fogo e do Dilúvio?
Atraiçoado
oco
ex-
posto em praça pública
para os olhos
das crianças, dos fotógrafos?
EU-COBERTO-DE-PELOS: virás me ver
atrás das grades?)

***

Assim é o medo

Henriqueta Lisboa

Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.

Da sombra espreita
à espera de algo
que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.

No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.

E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.

Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.
Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,

as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.

As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?


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