Notícias de outras ilhas: Chantal Castelli

Notícias de outras ilhas: Chantal Castelli
A poeta, tradutora, escritora e professora Chantal Castelli (Foto: Ricardo Rizzo)

 

Chantal Castelli (São Paulo, 1975) é poeta, escritora, tradutora e professora. Entre suas publicações recentes estão Os cães de que desistimos (São Paulo: Hedra, 2016 – com patrocínio do programa Petrobrás Cultural) e Outra língua entre os dentes (Londrina: Galileu Edições, 2019).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Maria-Mercè Marçal, Ronald Polito Roberto Bolaño. A seção tem curadoria de Tarso de Melo. Leia os poemas e os comentários da poeta abaixo.

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Dois poemas de Maria-Mercè Marçal

Enceto esse poema de amor na hora incerta
como a criança que canta mais alto
ao passar na frente do cemitério.
E digo amor. Rangem as dobradiças
de cada som. Racha-se cada letra,
estripo cada grama do sentido
– cheias de grumos as mãos, sangue preso…
Fóssil que busca liberar-se
da sua dureza mineral, coral,
fruto de rubi. Milagre do espelho
que multiplica o seu desejo. A angústia
abdica do seu nome: o trono
está vazio e convoca um tirano
desconhecido, decerto mais cruel.
O gavião fita, de longe, o passo dos dias:
não escapa nada ao seu olho frio.
Tudo dorme. E te chamo de amor, insisto
em chamar-te assim. E em não queimar
a casca da palavra, onde a carne parece
começar já a apodrecer. Não. Redizer-te.
Redizer-te aos arranhões no muro
que ergue entre o meu desejo e Você.

tradução de Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barbosa

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Como se um tubarão me arrancasse a mão
e logo a cuspisse na praia
e ela movesse os dedos por mandamentos
estranhos ao da minha vontade
e já não obedecesse mais o meu cérebro
– tal como a cabeça do galo decapitado
abre e fecha a boca e o corpo corre,
espavorido, longe, sem retorno –,
eu contemplava aquele pedaço de mim
tornado, já para sempre, estrangeiro,
e agora impresso para sempre, a coração e sangue,
no desejo cicatrizado, e na sombra.

tradução de Ronald Polito 

 

O livro Degelo, da poeta catalã Maria-Mercè Marçal (1952-1998), foi integralmente traduzido para o Português por Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barbosa, e publicado em 2019 pela editora Urutau. Porém meu primeiro contato com a obra de Marçal se deu pelas traduções de Ronald Polito, publicadas em três plaquetes editadas pelo tradutor nos selos Edições do Outro Mundo (o primeiro) e Espectro Editorial (os dois últimos): Degelo (Desglaç, 2004), uma seleção de poemas do livro homônimo; Razão do corpo (2005), uma seleção de poemas do livro póstumo de Marçal (Raó des cos, 2000); e A irmã, a estrangeira (2006), seleção de poemas do livro homônimo (La germana, l’estrangera, 1985).

Estou há umas semanas lendo e relendo esses textos, que tratam, principalmente, do amor e do sexo entre mulheres (Degelo), da morte (Razão do corpo) e da maternidade (A irmã, a estrangeira) – temas que reaparecem e se conjugam mais ou menos nos três livros.  Assim é no poema de Degelo que escolhi compartilhar; mas o escolhi porque trata principalmente do corpo animado pelo desejo, ainda que entre bloqueios. Já o segundo poema, de A irmã, a estrangeira, expressa como poucos a violência da maternidade.

 

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À toda

Ronald Polito

Ainda enquanto se constrói o desmonte. A peripécia suspensa na linha de chegada do sonho. Sob o peso do corpo do fantasma da máquina. Para um desfiladeiro. Nuvens de gases de efeito. Um tridente. O estatuto da caça. O toque que esboroa o perfil. O túnel que conserva o rato. O lançamento programado de um artefato. Um blecaute.

 

Estou relendo também a obra do Ronald Polito. “À toda” é o poema que fecha Rinoceronte, editado pela Quelônio em 2019, e certamente um dos livros mais bonitos e fortes desse ano.

 

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Um poema de Roberto Bolaño

O pesadelo começa aí, nesse ponto.
Mais pra lá, em cima e embaixo, tudo faz parte do
pesadelo. Não meta a mão nesse jarro. Não
meta a mão nesse vaso do inferno. Aí
começa o pesadelo, e tudo quanto a partir daí você
faça, crescerá sobre suas costas como uma corcunda.
Não se aproxime, não ronde esse ponto equívoco.
Ainda que veja florescer os lábios do seu verdadeiro
amor, ainda que veja florescer umas pálpebras que
preferiria esquecer ou reaver. Não se aproxime.
Não dê voltas ao redor desse engano. Não
mova os dedos. Acredite. Aí só cresce
o pesadelo.

tradução de Chantal Castelli 

 

O poema está no magnífico La Universidad Desconocida (Barcelona, Anagrama, 2007) ainda inédito no Brasil (embora seus poemas tenham sido traduzidos por diferentes autores e esparsamente publicados). Conter as mãos, desdenhar a miragem, recusar a oferta. Para tempos de espera.

 


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