Notícias de outras ilhas: Patrícia Lavelle

Notícias de outras ilhas: Patrícia Lavelle
A poeta e professora Patricia Lavelle (Foto: DIvulgação)

 

Patrícia Lavelle é poeta, professora do Departamento de Letras da PUC-Rio e doutora em Filosofia pela EHESS-Paris. Organizou o dossiê Orides Fontela publicado na Cult de março e coeditou, com Paulo Henriques Britto, O nervo do poema: antologia para Orides Fontela (Relicário, 2019).

De sua ilha, envia rosas para Orides Fontela, que faria 80 anos neste 21 de abril de 2020: dois poemas dela acompanhados de algumas notas de leitura e de “Um jardim para Orides”, poema de Ana Martins Marques. A curadoria é de Tarso de Melo.

***

Rosa

Orides Fontela

Eu assassinei o nome
da flor
e a mesma flor forma complexa
simplifiquei-a no símbolo
(mas sem elidir o sangue).

Porém se unicamente
a palavra FLOR – a palavra
em si é humanidade
como expressar mais o que
é densidade inverbal, viva?

(A ex-rosa, o crepúsculo
o horizonte.)

Eu assassinei a palavra
e tenho as mãos vivas em sangue.

Em Transposição

 

Assassino do nome, o “eu lírico” apresenta-se aqui como motor do processo pelo qual a palavra deixa de designar a coisa concreta – a forma complexa (e sensível) da rosa – para transpor-se, simplificada, no símbolo: uma flor ausente, como aquela de Mallarmé (que transcrevo e traduzo abaixo):

Je dis : une fleur ! et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absente de tous bouquets (Mallarmé, Divagations)

“Eu digo: uma flor! E, fora do esquecimento onde minha voz relega nenhum contorno, como alguma coisa outra que os cálices sabidos, musicalmente se eleva, ideia mesmo e suave, a ausente de todos os buquês”

Entretanto, distanciando-se da ideia suave de Mallarmé, poeta que Orides cita num ensaio intitulado “Uma despretensiosa mini-poética”, “Rosa” encena uma violência. Ao poetizar reflexivamente o próprio processo metafórico, tematizando o “assassinato da palavra” no interior do poema, esse “eu” sobre o qual nada sabemos, a não ser o crime de que se acusa, não quer “elidir o sangue”. Assim, embora não tenha nada de confessional, a primeira pessoa que o poema coloca em cena não é apenas uma instância do pensamento. Numa alusão à concretude do corpo, mostra-nos “mãos vivas em sangue”, expondo (ou transpondo) a violência simplificadora da transposição simbólica em relação à intensidade sensível. Longe de ser simples jogo intralinguístico, a metalinguagem implica aqui uma posição existencial na qual o próprio fazer poético aparece como uma forma de questionamento e investigação, que se confronta também à percepção. Por isso, talvez, o poema deixe em aberto a pergunta: como “expressar mais o que/ é densidade inverbal, viva”?

 

***

Vejo cantar o pássaro
toco este canto com meus nervos
seu gosto de mel. Sua forma
gerando-se da ave
como aroma.

Vejo cantar o pássaro e através
da percepção mais densa
ouço abrir-se a distância
como rosa
em silêncio.

Orides Fontela em Transposição

 

“Vejo cantar o pássaro”. O primeiro verso é simples e pode ser entendido literalmente: o canto não é ouvido, mas o “eu lírico” vê o pássaro cantar ao longe. Essa primeira pessoa não é apenas o sujeito lógico da proposição, como em “Eu assassinei o nome/da flor”, mas evoca um corpo que percebe, uma experiência concreta. Entretanto, a percepção visual de um objeto normalmente captado pelo ouvido desencadeia uma sucessão de metáforas que transpõem a imagem do pássaro que canta em sensação tátil, gustativa e olfativa. O objeto percebido transpõem-se, assim, de um sentido ao outro, numa interessante metamorfose que leva, finalmente, à audição do que é inaudível, isto é, à consciência da distância que, impedindo de ouvir o som do canto, se abre no espaço (ou talvez no tempo) “como rosa/ em silêncio”. O nome da flor, assassinado no poema que lemos anteriormente, aqui retorna, qual fantasma, em sua etérea consistência de símbolo. Transposta, essa rosa é uma “ex-rosa”. Crepúsculo da designação, torna-se um horizonte aberto de significação simbólica no qual a “densidade inverbal” da sensação viva encontra uma forma de expressão, ou talvez de transposição, nessa “percepção mais densa” que o próprio poema nos oferece.

Afinal, não é na leitura desse belo poema que de certa forma vemos o pássaro cantar, que ouvimos o seu canto silencioso? Tratada com delicadeza, a materialidade sonora da língua sobressai em discretas rimas internas, na repetição de vogais, nas regularidades rítmicas, em métricas cuja tonalidade tradicional o ouvido escuta, mesmo que a consciência não as reconheça: um decassílabo cortado em dois, no final da primeira estrofe, outro completo no início da segunda, outros ainda quebrados, desconstruídos em versos de seis e oito sílabas. Todo um artesanato daquilo que na língua é sensação e afeto sedimentado funciona aqui como suporte das transferências metafóricas que, operando no campo semântico, deslocam e transpõe a complexidade viva da sensação nesse jardim delicado, o próprio poema.

 

***

Um jardim para Orides

Ana Martins Marques

Quem tem um jardim
tem um relógio

hora da cigarra
hora da rosa

hora do lagarto
hora da hera

e acima
as estrelas
pedras
atrasadas
acesas
à noite
à distância

*

Brilha no jardim
o silêncio das plantas

brilham as pedras
redondas

brilham as sementes
arquivos do sol

brilham as flores
que não sabem que são flores

brilha a distância
do mar

brilham as coisas
caladas

brilham a infância
das formas

brilha a rosa
emaranhada em seu nome

e brilha a página
anterior à inscrição
limpa ainda de palavras
– como um jardim
em branco

em O nervo do poema : antologia para Orides Fontela


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