Notícias de outras ilhas: Paulo Ferraz

Notícias de outras ilhas: Paulo Ferraz
O escritor Paulo Ferraz (Foto: Divulgação)

 

Paulo Ferraz (Rondonópolis, MT, 1974), é autor dos livros Constatação do óbvio, Evidências pedestres, De novo nada (publicado também no Equador e no México) e Vícios de imanência, semifinalista do Prêmio Oceanos de 2019.  Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Rainer Maria Rilke, Konstantinos Kaváfis e Sándor Petöfi. A curadoria da seção é de Tarso de Melo. Leia abaixo os poemas e o comentário do escritor.

 

O primeiro poema que me veio à memória foi “A pantera” do Rilke, certamente por estarmos agora como ela, olhando o mundo pelas grades. Essa viagem diária pelos menos cômodos, a descoberta de cantos ocultos, o reencontro com objetos esquecidos, a dedicação aos afazeres domésticos, agora ressignificados, como assar seu próprio pão, a própria rotina que pode parecer um eterno retorno talvez avivado a expectativa de que esse percurso ao final há ser proveitoso, como o Kaváfis sugere em sua “Ítaca”. Havia outros nomes, outros poemas, mas preferi jogar os dados e o acaso me fez chegar ao poema “Pão escuro” de Sándor Petöfi, poeta romântico da Hungria, por cuja independência morreu em 1849. Há muitas descobertas a serem feitas e muito afeto a ser compartilhado o dia inteiro todos os dias.

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A pantera

Rainer Maria Rilke

No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

tradução de Augusto de Campos

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Ítaca

Konstantinos Kaváfis

Se partires um dia rumo a Ítaca
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não o levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quando houver, de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha, velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso, não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

tradução de José Paulo Paes

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Pão escuro

Sándor Petöfi

Boa mãe, por que te preocupas?
Por que o teu pão é escuro? Só por isso?
Quando o teu filho não está em casa
Porventura é mais branco o pão que tem?
Põe-no à minha frente, tal qual é.
Deixa ser escuro. Melhor me sabe
O pão escuro aqui em casa, boa mãe,
Do que o pão branco noutro sítio qualquer.

tradução de Zoltan Rozsa/Ivette K. Centeno


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