Notícias de outras ilhas: Pádua Fernandes

Notícias de outras ilhas: Pádua Fernandes
O poeta Pádua Fernandes (Foto: Fabio Weintraub)

 

Pádua Fernandes (Rio de Janeiro, 1971) é autor, entre outros títulos, do livro de poemas O desvio das gentes (Patuá, 2019), do romance Gravata lavada (Patuá, 2019), do livro de contos Cidadania da bomba (Patuá, 2015) e do ensaio Para que servem os direitos humanos? (Angelus Novus, 2009).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Alberto Pimenta, Ana Arzoumanian e Sam Sax. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo. As traduções de Ana Arzoumanian e Sam Sax são do próprio Pádua Fernandes.

 

Transcrevi apenas o início deste poema do grande Alberto Pimenta, um dos maiores autores da língua portuguesa em todas as épocas. “Porta 2”, uma reflexão sobre a morte, parte do suicídio do poeta russo citado e passa, entre outros assuntos, pela esquerda armada na Alemanha nos anos 1970. Ele veio de seu livro mais recente, Zombo (Lisboa: Edições do Saguão, 2019), que inclui uma menção, entre as diversas zombarias e reflexões sérias (elas não se opõem, mas se combinam nesta poética), ao “Bolso ignaro”. Pimenta dialoga em termos bem próprios com a tradição das cantigas de escárnio e maldizer desde o primeiro livro, O labirintodonte, de 1970. Décadas após, o poeta já passou dos oitenta anos de idade, mas sua capacidade de derrisão e sua atenção ao mundo nunca arrefeceram.

Este livro da argentina Ana Arzoumanian, Káukasos (Buenos Aires: Activo Puente, 2011), é uma obra notável: consiste em um poema longo em que a história do genocídio e da diáspora armênios cruza-se com outras histórias de extermínio e se incorpora ao tempo pessoal de uma certa mulher. É de lamentar que continue inédita no Brasil. Além da obra literária, a autora também é uma pesquisadora dos crimes contra a humanidade.

Sam Sax, dos Estados Unidos, é o poeta mais jovem dos que escolhi; ele se identifica como “queer” e se interessa pelo judaísmo da diáspora, o que está bem presente em sua poesia. O poema vem de seu primeiro livro, Madness (Penguin Books, 2017), que contém mais dois com o mesmo título; eles lidam com experiências de homens homossexuais na prevenção de infecções sexualmente transmissíveis. Escolhi traduzir parte do primeiro.

Em relação a outras dicas culturais, escolho a música. Para uma seleção mensal de transmissões gratuitas de ópera e de concertos, aconselho acompanhar o Forum Opera.

Em relação a grupos brasileiros, destaco a Associação Coral da Cidade de São Paulo e a Orquestra Acadêmica, organizações independentes, não governamentais, que passaram em abril de 2020 a oferecer seus vídeos de concertos e óperas (incluindo obras como o Requiem de Mozart e a Carmen de Bizet) para assinantes no sítio virtual Uniopera.

 

***

PORTA 2 (trecho)

Alberto Pimenta

esse não, nem pensar
o de Ièssenine
muito trágico
espectacular sem
público e
para mais doloroso,
pulsos abertos
a escorrer a cor da bandeira
que foi da revolução,
e depois também
não é só a cor a cair
é a corda
toda pingada
quando a pôs em volta do pescoço,
o corpo então a pender, e tudo a decorrer
num hotel de grande luxo
de Leningrado
[…]

***

KÁUKASOS (trecho)

Ana Arzoumanian

[…]
Eu uma negra que está
aqui
agora,
porque não esteve
na Anatólia
nesse momento.
Aqui como um barco
que te busca na orla
dos portos
do mar
que não se enche,
para que me vejas
enquanto afundo.
A corda
com que enforcaram
as meninas
nas plantações.
Eu, uma negra
consumida
por chicotadas.
Todas as manhãs
do mundo
eu
um povo vencido
assisto
ao nascimento
de uma nação.
[…]

***

Em PREP ou em prece (trecho)

Sam Sax

[…]
o paraíso é um garoto
ele quer que eu nade
através da janela noturna de sua mãe

o paraíso é o preservativo partindo-se na luz

o paraíso não é um lugar
mas antes uma ferida que eu faço e atravesso

quando acabamos
ele pergunta quantos homens
eu fodi neste mês
& não amei

poupe-me de colcha & cobertor

poupe-me do olhar
nos seus olhos quando me toma
cuidadosamente como um veneno dentro dele
[…]


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