Notícias de outras ilhas: Edimilson de Almeida Pereira

Notícias de outras ilhas: Edimilson de Almeida Pereira
O poeta Edmilson de Almeida Pereira (Foto: Carlos Mendonça)

 

Edimilson de Almeida Pereira (1963) é professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG. Entre diversos livros de ensaio e poesia, é autor de Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma epistemologia de base afrodiaspórica na Literatura Brasileira (Azougue, 2017) e Poesia + (Editora 34, 2019), antologia que reúne poemas de várias fases de sua obra, escritos entre 1985 e 2019.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Adão Ventura, Eustáquio Gorgone de Oliveira e Sérgio Kleinsorge. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

Com a licença das leitoras e leitores, trago à ilha virtual da revista Cult três autores que, já não estando entre nós, “permanecem” aqui, ao nosso lado, por demonstrarem uma percepção aguda da linguagem e das relações entre a história do indivíduo e da sociedade. Por meio de uma poética cerzida com fios das dicções barroca e expressionista (para considerarmos apenas dois focos de atenção dessas poéticas), Adão Ventura, Eustáquio Gorgone de Oliveira e Sérgio Kleinsorge escreveram obras atemporais. Poetas do enigma e da revelação, do sonho e da realidade social, deixaram um legado estético que nos ensina a extrairmos forças de nossa própria vulnerabilidade.

 

O primogênito da cultura

Adão Ventura

o primeiro filho nascera coberto de arame farpado; montanhas circundaram-lhe o corpo. axilas douradas compactuavam com o seu sétimo dia. seus cabelos pré-fabricados de espumas impunham amor nas ataduras dos deuses. seu primeiro dente obstruía as entradas dos navios no porto e os passaportes para os pássaros.
– compraram-lhe roupas verdes de raízes; suas mãos conduziam cordas e sombras para o desencanto dos mortos.
– fizeram-no mártir; sua vestimenta de gases mortíferos envenenava palavras e adulterava sonhos. os parentes vieram visitá-lo e ofereceram-lhe pontes; seu corpo foi completado por madeiras. as mulheres quiseram dividi-lo em ciúmes, mas sua sombra imprimia silêncio. – quando a faca chegou, seu corpo abriu-se em sofrimentos, a carne não se conteve e escancarou-se em portas; de suas entranhas desertaram terras (posses de acabadas eras.) lembro-me dos sóis desatados de suas tranças, seu nome incrustado no limbo corroía estátuas de mil séculos.
– o jardim já estava nos olhos semicerrados de cera.

Em Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul, Edições Oficina, 1969

***

Soledade de Minas

Eustáquio Gorgone de Oliveira

As horas para mim são tão longas
Que já me habituei com o chamado das camas
E a lentidão de meus sonhos.
Ando de um canto para o outro sem pressa
Levando minha pessoa inteira com cuidados
Para de ruim nada me acontecer.
O teto da casa onde vivo já se acostumou
Às minhas maneiras com que reajo ao sol
E ao meu corpo que abandona os quartos
Com as mãos erguidas de sono.
Eu e o tempo já nos adaptamos amavelmente,
Sem atritos, rangidos e sussurros,
E tão bondosos somos um para o outro
Que ele amarra meus sapatos de baile.
As festas efêmeras tornaram-se minhas amigas
De confiança e eu, estrela perdida no céu,
Vou vivendo da vida que vive em mim.

Em Delirium-tremens, Editora Pongetti, 1974.

***

Árvore genealógica

Sérgio Kleinsorge

Em nossa família como procedemos:
órfão
o filho põe no colo o retrato do pai
e manda tirar um retrato.
Morre
e seu filho segura a imagem do pai junto ao avô
para novo retrato
amanhã no colo do filho seguinte.

De morte em fotografia
o sangue tem sobrevivido.
A cada retrato
rasgamos o precedente
nosso álbum só precisa de uma página.
Envelhecemos de fora para dentro
a memória dos antepassados preservada
enquanto dura a nitidez de seus rostos.

Em Teseu, funcionário público, Imprensa Oficial, 1991


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