Notícias de outras ilhas: Cide Piquet

Notícias de outras ilhas: Cide Piquet
(Foto: Arquivo pessoal)

 

Cide Piquet é editor na Editora 34, tradutor e poeta. Organizou e traduziu Só para maiores de cem anos: antologia (anti)poética, de Nicanor Parra (com Joana Barossi, Editora 34, 2018), Esta vida: poemas escolhidos, de Raymond Carver (Editora 34, 2017), Histórias para brincar, de Gianni Rodari (Editora 34, 2007), 20 haicais de Issa (plaquete eletrônica, Editora Igarapé, 2020), entre outros. De sua autoria, publicou malditos sapatos (Hedra, 2013) e Poemas e traduções (Quelônio, 2018).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Carlos Drummond de Andrade, Cruz e Souza e Edimilson de Almeida PereiraA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

Desde o começo da quarentena, tenho me dividido entre o trabalho para a Editora 34, em regime caseiro, os cuidados com casa e alimentação, a administração das neuroses, uma pequena horta que comecei na varanda do apartamento e as leituras e traduções de poesia, a que sempre me dediquei e que agora, mais do que nunca, constituem uma mínima tábua de salvação nesse grande naufrágio a que estamos expostos.

Para esta publicação, escolhi três poemas. “Notícias”, de Drummond, porque é um dos meus poemas favoritos, do qual me lembrei desde as primeiras “Notícias de outras ilhas”. De fato, a casa nunca foi tão pequena para um homem e tantas notícias!  E se Drummond se angustiava em 1944-45 (o poema é do livro A Rosa do Povo) com os telegramas comunicando o sofrimento e as mortes das vítimas da Segunda Guerra Mundial, e com o sentimento de impotência daí decorrente, agora sofremos com as notícias diárias de milhares de brasileiros e brasileiras mortos em nossas cidades, ruas, prédios, famílias.

“Escravocratas”, do imenso Cruz e Souza, porque, afinal, é ainda e sempre disso que se trata no Brasil: do genocídio dos povos negros e indígenas, dessa grotesca injustiça sobre a qual o país se fundou e que se perpetua até hoje. Só seremos um país digno quando fizermos justiça à nossa história, cujos capítulos mais bonitos e relevantes foram e são escritos todos os dias justamente por esses povos.

Por fim, um poema de Edimilson de Almeida Pereira, de quem tive a alegria de editar dois livros pela 34 nos últimos anos. Escolhi este “Não leias como eles”, que para mim ecoa tanto a “Procura da poesia”, de Drummond, como “Para o livro de literatura do segundo grau”, do alemão Hans Magnus Enzensberger, e que me parece propor uma defesa da poesia enquanto zona privilegiada de pensamento & ação contra o mundo mercantilizado e esvaziado de potência e mistério da sociedade de consumo.

 

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Notícias

Carlos Drummond de Andrade

Entre mim e os mortos há o mar
e os telegramas.
Há anos que nenhum navio parte
nem chega. Mas sempre os telegramas
frios, duros, sem conforto.

Na praia, e sem poder sair.
Volto, os telegramas vêm comigo.
Não se calam, a casa é pequena
para um homem e tantas notícias.

Vejo-te no escuro, cidade enigmática.
Chamas com urgência, estou paralisado.
De ti para mim, apelos,
de mim para ti, silêncio.
Mas no escuro nos visitamos.

Escuto vocês todos, irmãos sombrios.
No pão, no couro, na superfície
macia das coisas sem raiva,
sinto vozes amigas, recados
furtivos, mensagens em código.

Os telegramas vieram no vento.
Quanto sertão, quanta renúncia atravessaram!
Todo homem sozinho devia fazer uma canoa
e remar para onde os telegramas estão chamando.

***

Escravocratas

Cruz e Souza

Oh!, trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados ― bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar ― formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha ― enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário ―
― Da branca consciência ― o rutilo sacrário
No tímpano do ouvido ― audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro ― ouvindo-vos urrar!

***

Não leias como eles

Edimilson de Almeida Pereira

os livros de poesia, os livros sagrados que são
poesia.
Eles tiram leis e procedimentos de um bosque
somente bosque.

O bosque escuro da metáfora, quando muito
centeio,
que pão nenhum será. Eles tiram o que não
merece crédito de onde

nada se deve esperar. Não recites, nem receites
a viúva negra.
Ela, por nunca sair, alumbra
como um dardo.

Não esperes, pai, que depois da lição noturna
sejamos salvos. Não
poderíamos pedir ao jaguar que mudasse sua
costura.

Não leias como eles os livros sagrados: a poesia
cobre a última
desonra. Ela, por não sorver além de si, perdura
e morre.

Se houver tempo, devolve a poesia aos répteis.
Não leias como eles
a escrita rupestre: começa a duvidar das leis
que civilizam o bosque.


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