Notícias de outras ilhas: Heitor Ferraz Mello

Notícias de outras ilhas: Heitor Ferraz Mello
O jornalista Heitor Ferraz Mello (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Heitor Ferraz Mello tem 54 anos. É professor e jornalista. Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Rosa Oliveira, Duda Machado e Manuel António Pina. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do jornalista abaixo.

 

Não sei ainda quais seriam os três poemas da minha ilha. Minha ilha está desorganizada. Os livros bagunçados pela sala, jogados no chão, ou em cima de cadeiras, bancos, banquetas, mesas, recifes, ilhotas tortas e turvas. Tudo fora de ordem. Robinson Crusoé surtaria se fosse lançado nesta praia desolada; Robinson Crusoé era muito organizado e certamente tinha toc e esfregava o chão com água sanitária. Fazia listas, organizava o trabalho e os dias. Não consegui ainda me organizar; acordo sempre em cima da hora de entrar no computador, olhar para uma tela de iniciais, e começar a falar, a falar, por mais de uma hora, até perder o fôlego. E sair. Zonzo de palavras.

Os poemas ainda me acompanham, é verdade. Mas não da mesma maneira que me acompanhavam antes. Antes, eles eram mais livres. Agora, toda vez que passo a folhear algum livro de poema, me deparo com o relato do fim do mundo. Me lembro de uns versos de Rosa Oliveira, poeta portuguesa que me foi indicada pelo Changuito, numa manhã de domingo em que estive na livraria dele, em Lisboa. Não a conheço, não sei em que ilha ela hoje habita, mas esses versos reverberam na minha cabeça: “agora que morremos/ a vida pode enfim recomeçar/  agora que a vida parou/ podemos falar uns dos outros sem o espectro da ofensa// agora basta olhar/ aconchegar um pouco as cinzas/ reconfigurar o passado.” Talvez este seja um dos poemas da minha ilha.

Há muitos outros, sem ordem clara, ou lógica. A noite se confundiu com o dia; o dia não é mais o dia; o futuro foi suprimido; e a rua só não está calada, porque os cachorros ainda latem, o caminhão do gás ainda passa com sua musiquinha, e o zelador caminha pelo jardim regando as plantas. O zelador deve ser como as plantas; deve ser como os pássaros. Torço para que assim seja. Mudou-se para o prédio. Na rua, há também um guardinha que apita a cada hora. Como se nada tivesse sido alterado. Essa circulação me amedronta. Temo por eles. Como também temo por mim, cada vez que sou obrigado a pegar um bote e atravessar essas águas para chegar do outro lado.

Às vezes, tenho uma imensa vontade de pegar esse bote, largar essa ilha e pedir um pão na chapa e um café expresso na padaria da esquina. Ver o movimento das pessoas atulhadas nas mesas com seus laptops; olhar para os painéis pintados de uma outra padaria que frequentei, no Campo Belo, onde havia um enorme painel na parede dos fundos com caravelas camonianas enfrentando o azul escuro e espumoso do Tejo, deixando o Mosteiro dos Jerónimos para trás, e se afastando da Torre de Belém. No teto, um outro painel, redondo, do tamanho de uma mesa para seis pessoas, representa um astrolábio. Minha navegação se desorienta.

Nesta minha ilha, acabei topando com um poema do Duda Machado (por onde andará Duda Machado?), em que ele descreve com uma precisão incrível um bar, Bar Santa Cecília. Não sei onde fica, em que cidade. Mas não importa se existe, existiu, se é inventado, se tem ou não uma mulher gorda atrás do balcão. Me lembrou tantos outros bares – os que se espalham por debaixo do Minhocão, onde passei algumas madrugadas conversando com pessoas queridas, das quais tenho imensa saudade. A vida parada, como num cromo, mas trepidando por causa do viaduto que passa logo acima. Não sei onde fica esse bar do Duda; mas essa imagem me emociona.

Queria encontrar outros poemas espalhados como ilhotas dentro dessa ilha, onde poderia ver, sentir, cheirar, beijar, abraçar, conviver com todas as pessoas que amo, e que hoje se encontram, como eu, ilhadas num cubo de treva, recebendo as piores notícias do mundo.  Vou parar aqui, no Café do Molhe, disfarçando outra vez a paixão estampada na cara.

 

***

strindberg

Rosa Oliveira

As pessoas às vezes são tão indefesas… É como estar na floresta de noite. Corujas voam por cima com os seus olhos brilhantes, animais rastejam e uivam e gemem. Somos cercados por ruídos húmidos…
(Em Busca da Verdade, Ingmar Bergman, 1961)

agora que morremos
a vida pode enfim recomeçar
agora que a vida parou
podemos falar uns dos outros sem o espectro da ofensa

agora basta olhar
aconchegar um pouco as cinzas
reconfigurar o passado

tínhamos muito pouco
fios de suspeita
espreitando entre portas
pressentimos as peças que faltavam
subentendidos
falangetas perdidas
elos naturalistas espalhados pela floresta
rumores de anões atarefados
cogumelos a crescer nos bastidores
brumas no sótão
corridas de ratos na casa da lenha
rigorosamente
empilhada para o inverno

para viver tínhamos de esquecer prazos e limites
desleixados
não sorvíamos a vida a plenos pulmões
absortos
adiámos a eternidade em troca do urgente

parece que nietzsche viu isto e enlouqueceu

(Cinzas, Tinta-da-China, 2013)

***

Bar Santa Cecília

Duda Machado

A tevê, o ventilador
fixado no alto
da parede ao fundo;
o metal amassado

do balcão, cuja limpeza
surpreende; a mulher
gorda, de gola alta,
com quem ninguém

se atreve a brincar
por causa de suas ligações;
os três amigos, aos quais,
às vezes, o dono do bar

se reúne na conversa;
o freguês casual junto
à porta, e nas prateleiras,
mesas, copos, gestos, rostos,

– contínua, pertinente -,
um resto de trepidação
que vem do viaduto
ao lado.

(Adivinhação da leveza, Azougue, 2011)

***

Café do Molhe

Manuel António Pina

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

(O coração pronto para o roubo, Editora 34, 2019)


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