Notícias de outras ilhas: Eltânia André

Notícias de outras ilhas: Eltânia André
A escritora Eltânia André (Arquivo pessoal)

 

Eltânia André nasceu em Cataguases, MG, em 1966 e hoje mora em São Pedro do Estoril, Portugal. É autora dos livros Manhãs adiadas (Dobra Editorial, 2012), Para fugir dos vivos (Patuá, 2015); Diolindas (Penalux, 2016) – escrito em parceria com Ronaldo Cagiano – e Duelos (Patuá, 2018).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Lupi Cotrim, Al Berto e Kátia Gerlach. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da escritora abaixo.

 

O poema “De Pedra”, de Lupe Cotrim, instiga-me há anos, pois representa o eco e a potência de uma ancestralidade, algo imanente aos meus sentidos: as palavras e ritmo tanto servem para lavar a louça quanto para justificar o mundo. Ele está vivo na minha memória, “como um cão vivo dentro de uma sala”, atravessando como o Capibaribe de João Cabral Melo Neto. O poema de Kátia Gerlach é uma referência aos dias tenebrosos que a humanidade está atravessando, foi-me enviado pela autora, em primeira mão, na sequência de uma troca de correspondências, reverberando não só a preocupação que temos com este momento tão avassalador, mas também me soa como uma deferência à amizade no período de isolamento compulsório. Al Berto é um dos poetas mais significativos e mitológicos da literatura de língua portuguesa, ainda pouco conhecido no Brasil. Sua poesia é um mergulho intenso em nossa condição, uma arte que assimila uma grande pulsão filosófica em sua tentativa de inquirir sobre a nossa finitude e entender os mistérios existenciais.

 

***

De pedra

Lupi Cotrim

— Eu sou de pedra, me dizias,
a defender tua distância.
E esquecias o musgo,
essa tua epiderme de ternura,
e o teu corpo de carinhos,
num horizonte de água e terra,
a te envolver na vida.
— Eu sou de pedra — insistias.
— Pesado. Denso. Inalterável.
De estofo eterno.
Apenas estou, não sofro;
se algum gesto me ferir,
eu sou duro;
quebrarei o gesto sem sentir.
E esquecias
que és pouso de borboletas,
alicerce de flores,
abraço de raízes,
vulnerável em tudo
do que em ti pertence
e minha mão possui, acaricia.
— Eu sou de pedra.
E esquecias, esquecias.

***

A minha cidade não está vazia

Kátia Bandeira de Mello Gerlach

No sonho, arranquei as unhas
não sobrou uma
para tatear o seu rosto
com o sabugo identificá-lo
bem; em sua porosidade de pele

Da Morte que assombra
soberana neste corpo-casa
vestido em manto
na cor bizantina, roxa

A minha cidade não está vazia
e se alguém vier me contrariar
decreto a sua loucura lógico-desvairada
porque a minha cidade está aqui
criando e recriando uma citadela

Os soldados enchem sacos
de areia, armam os hospitais,
embriagam-se nos crematórios
A minha cidade não está vazia
Parem de gravar as cenas
o meu coração quer pulsar
quebrem-se as lentes

Os viajantes errantes partem
deitam o corpo-casa-toca
sem despedir-se da minha cidade.

Justo a minha cidade que não
está vazia, os vizinhos em seus lares
rezam sobre seus tapetes
encerradas as igrejas mesquitas templos
as sinagogas, os aquários
transbordando fiéis, peixes,
os hipocampos e os leões de Moscou.

A minha cidade não está vazia
olhem para esta cavidade afundada no peito,
para as árvores que nunca tive.

Nas ruas becos avenidas, ainda
a minha cidade não está vazia
Por onde passou John,
passa a Dançarina Daisy of the Hills,
com as castanholas da avó
batendo nas mãos.

A minha cidade não está vazia,
Ocupada por corpos-casas-sombras
por onde cruzaram
Francisco e Guadalupe,
a ela, a quem sempre apelei
na catedral, ajoelhada
diante dela, tende piedade de nós.

A minha cidade não está vazia,
Não, Senhor dos Ares,
os voos não chegam,
os falcões sacodem os ossos
como medida de ressurreição,
quando tombam do céu,
cai o peso, o pesar.

Dizem que neste século, as sombras
são absolutas, bizantinas e roxas
como uma batata roxa.

A minha cidade não está vazia
porque assim nunca existiu
podem me mostrar imagens, filmes
não acreditarei que
a minha cidade esteja,
de alguma forma: vazia.

Vazios os trens, os bares,
vazio, o Black Cap Café.
Entretanto, a cidade não está vazia,
prometo, afirmo, juro,
faço a cruz em frente ao peito,
estilhaça, o terço de cristal

e declaro em versos:
A minha cidade não está vazia
os corpos são casas,
corpos-casa.
As máquinas pararam,
e os elevadores não sobem nem descem.

Shabbat-shalom quando o sol se põe

Shabbat-shalom quando o sol volta

Shabbat-shalom quando a paz

povoar ruas becos avenidas casas
na minha cidade que não está vazia
iremos capturar os animais fugitivos.

Segunda Terceira Quarta Quinta Sexta Guerra Mundial
Na minha cidade que não está vazia
agora ergueram os Checkpoints
não sei se Charlie, ou Rose
terão o certificado de imunidade
para passar.
Isto tudo vai passar, passar, passar

A minha cidade não está vazia
Você, eu, eles, elas
amantes passageiros
estamos, ficamos, descansamos
não sossegamos
fumigamos os livros,
desinfectamos as roupas e os sapatos

São quatorze dias para a quarentena
a minha cidade não está vazia
escrevo desta cadeira
em outra língua seria menos doloroso
trocar horas e lugar
por tanto adorar, não sei se vou ficar.

***

Notas para o diário

Al Berto

 

            deus tem que ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes,

lâmpadas acesas corpos palpáveis, vivos e limpos.

 

            a dor de todas as ruas vazias.

 

            sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abismo.

            sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.

 

            a dor de todas as ruas vazias.

 

            mas gosto da noite e do riso de cinzas, gosto do deserto, e do acaso da vida.

gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.

            pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo

tem a precariedade doutro corpo.

 

                        a dor de todas as ruas vazias.

 

            pois bem, mário  – o paraíso sabe-se que chega a Lisboa na fragata do alfeite, basta por uma lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

            é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.

 

                        a dor de todas as ruas vazias.

 

            sujo   os olhos com sangue, chove torrencialmente, o filme acabou. não nos conheceremos nunca.

 

                        a dor de todas as ruas vazias.

 

            os poemas adormeceram no desassossego da idade, fulguram na pertur-

bação de um tempo cada dia mais curto. e, por vezes, ouço-os no transe da

noite. assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas… e

nada escrevo.

            o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e a alma esburacada

por uma agonia tamanho deste mar.

 

                        a dor de todas as ruas vazias.


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