Notícias de outras ilhas: Andreev Veiga

Notícias de outras ilhas: Andreev Veiga
O poeta Andreev Veiga (Foto: Arquivo pessoal)

 

Andreev Veiga, poeta. É autor de diálogonuvem (FCP, 2016) e O mergulho do afogado (Kotter Editorial, 2019). Recebeu o Prêmio Bolsa Funarte de Criação Literária, 2012, com o projeto Insular Palavras. Realizou as videoartes Antes que chegue (2014), Por uma razão (2015), Onde a cinza destila (2015), A espera (2015), Liturgias (2018) e Ballet (2018). Organizou a antologia “O vento continua, todavia: dez vozes da poesia contemporânea em Belém” (2020).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Wislawa Szymborska, Fernando Pessoa e César Vallejo. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

A escolha desses poemas revela, para mim, que o mais importante nesse momento de dor, é nos dedicarmos à vida de maneira mais simples. Precisamos repensar nosso comportamento, quase sempre egoísta e insensato. Os temas desses poemas, manifestam no mundo um pouco de esperança. Ora vinda como uma pluma alçada pelo tempo, ora como um soco, dada a consciência de vida e morte. Tais dimensões compreendem um gesto de generosidade, numa autocritica capaz de construir significados para, quem sabe, uma boa noite de sono.

 

Filhos de época

Wislawa Szymborska

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.

Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

Trad. Regina Przybycien

***

Poema em linha reta

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

***

Os arautos negros

César Vallejo

Há golpes na vida, tão fortes… Eu não sei!
Golpes como do ódio de Deus; como se diante deles
a ressaca de todo o sofrimento
se empoçasse na alma… Eu não sei!

São poucos, mas são… Abrem fendas escuras
no rosto mais fero e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de bárbaros átilas;
ou os arautos negros que nos manda a Morte.

São as quedas profundas dos Cristos da alma,
de alguma fé adorável que o Destino blasfema.
Esses golpes sangrentos são as crepitações
de algum pão que se queima na boca do forno.

E o homem… Pobre… pobre! Volve os olhos, como
quando alguém bate as mãos por trás de nós;
vira os olhos loucos, e tudo que foi vivido
se empoça, como charco de culpa, no olhar.
Há golpes na vida tão fortes… Eu não sei!

Trad. Thiago de Mello


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