Notícias de outras ilhas: Marília Garcia

Notícias de outras ilhas: Marília Garcia
A poeta e tradutora Marilia Garcia (Foto: Arquivo pessoal)

 

Marília Garcia (Rio de Janeiro, 1979) é poeta e tradutora. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (2014, 7letras) e Câmera lenta (2017, Companhia das letras), pelo qual ganhou o prêmio Oceanos 2018.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Lu Menezes, Lenora de Barros e Leslie Kaplan. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

Três mulheres. Três Ls. Três línguas. Três corpos (ou recortes de corpos, ou ângulos de corpos). As três nascidas entre 43 e 53. Poesia, artes visuais, tradução, mas não necessariamente nessa ordem, ou melhor, poesia, artes visuais e tradução se atravessam nesses trabalhos de Lu Menezes (1948), Lenora de Barros (1953) e Leslie Kaplan (1943).
O poema de Lu Menezes “Cola com anticolas” parte de um trabalho de Lenora de Barros, em que a “artista paulistana” começa a escovar os dentes e transforma a pasta de dente em uma máscara branca cobrindo o rosto inteiro (o trabalho se chama “Homenagem a George Segal”, vale a pena ver no Google o efeito visual). Essa cena é posta lado a lado com uma cena de um filme da “cineasta belga” Chantal Akerman em que a personagem começa a engraxar as botas, passa a cobrir a perna com graxa preta e termina incinerando o cômodo inteiro deixando tudo preto. O make me an angle, pede o poema, make me a mask! Ela anseia por uma máscara vermelha, tal como a casa do trabalho de “Cildo” (Cildo Meireles, “Desvio para o vermelho”), que só tem objetos vermelhos, mas ela precisa respeitar os limites e contornos sociais ao pintar os lábios e não deixar escapar nem um milímetro de “impulso inoportuno”, embora queira a anticola da máscara vermelha. Poema com capacidade de síntese absurda está no livro Onde o céu descasca (7letras, 2011). Veja a Lu Menezes lendo o poema aqui. Esse poema feito de anticolas me levou a escolher um dos poemas visuais (cine-poemas?) de Lenora de Barros chamado “Poema” (1979). Em seis fotogramas a artista representa o embate da escrita: primeiro, a língua. Depois a língua se aproxima do teclado, em seguida passa a ter um embate com a máquina de escrever e, afinal, a máquina escreve.
Por último, o poema de Lenora me lembrou um poema de Leslie Kaplan, “Translating is sexy”. O poema é uma resposta à enquete feita pela revista Action poétique “A forma-poesia vai, pode, deve desaparecer?”. Leslie Kaplan, que é uma poeta bilíngue (franco-americana) responde aproximando a poesia da tradução em um poema bilíngue (inglês-francês). Para ela, a tradução (a poesia) é uma troca entre duas línguas que buscam um ponto de encontro: talvez um beijo, lá no fundo da boca, um encontro que produza faísca. Inseri a tradução deste poema no meu livro Um teste de resistores (7letras, 2014), traduzindo apenas a parte em francês.

***

Cola com anticolas

Lu Menezes

O make me an angle!
você aos céus implora
na cola de Dylan Thomas rogando
O make me a mask!

e na branca anticola
daquela artista paulista escovando
os dentes até não mais se ver
um pingo de rosto atrás
da máscara de pasta…

e na negra,
da cineasta belga engraxando
as botas e depois
as pernas e depois
incinerando a habitação

– Do Cosmo ao subsolo
na anticola vermelha de Cildo,
O make me an angle!
– insistes

na frente do espelho
passando o batom sem ultrapassar
limites… sem se desviar… respeitando
o contorno labial, o entorno social;
exorcizando
todo extra-artístico risco de escândalo
que algum milimétrico
impulso inoportuno possa criar

***

Poema

Lenora de Barros

***

Translating is sexy

Leslie Kaplan

a poesia é um beijo
entre duas línguas
a french kiss
ou
um beijo americano

buscar o ponto
em que as duas línguas se encontram
lá no fundo
da boca
ou numa superfície
a ponta da língua
contra a ponta da outra língua
how do you say that in english?
i love you
that’s all
and
hold me tight
and
give it another try
baby

qual é o ponto de encontro
the meeting point
mas isso lembra o ponto
da carne
i can’t meet you here
dear meat

let’s play
a game
um jogo

translating
is sexy

i know that

so

a boca the mouth
a língua the tongue

descreva a sensação
ooh ooh ooh
descreva de verdade

the tip of my tongue
dear love
will touch yours
dear love
and we will sing
dear love
together

the tip
of my tongue
will touch
yours

we won’t sing
my love
we will breath
my love in silence

we won’t sing
we will breath
in silence

we will live
and touch
slowly

does the tongue
have a skin?
the soft skin
of the tongue
will rape me
not rape
wrap
not wrap

que língua doce
e um pouco
rugosa

para não falar
da saliva
doce e viscosa
lá dentro da boca

podemos trocar de saliva

ou talvez
ela faça a troca
como uma velha ponte bamba

a gente balança em cima dela
ela nos leva
é uma língua uma saliva uma velha ponte bamba
ela leva a gente
e nos faz passar

but say it again
the soft skin of the tongue

some thing soft
and pointed

how is that possible

it is

say it
and do it

you do it to me
i’ll do it to you
again
and again
till silence
how is silence possible
the soft skin of silence

it is

soft silence
pointed silence

can silence be a bridge?
it can
it is

and here we are
welcome

little word
little word

me diga uma palavra
só uma palavra

she didn’t like men with poney tails
ela não gostava de caras com rabo
de cavalo

cortes
nuances
cuidado

i told you

about translating

give me
one word
just one word
that would open up
open up
explode
and multiply

sim
vamos lá
até o fim

a word
uma palavra

a word from you
my love
breaks me up
my love
and makes its way

my love
far inside me

assim vai

she always gave him
a lot of trouble
era
uma chata

shut up
stupid
me beija
estúpido
there was this awful american
woman
who would say
she wanted to have sex

caramba
é nojento
but they do
they say that
those terrible
american woman
essas
mulheres
americanas
horrorosas

oh
oh

O céu e as nuvens na aurora. Nada nos protege do esplendor. Quando se quer todas as coisas. O céu, o vinho, os livros, o amor. E o pensamento. Se não temos o pensamento, não temos nada. Nada de nada. Mas também não temos o pensamento.

Nós pensamos.

all the words
from all the times
from all the lives
you have lived
and will live

todas as palavras estão aí
disponíveis
elas esperam
all the words
and all the worlds
from all the lives
and all the lovers
cada palavra
está ali
não amanhã
hoje
NOW


> Assine a Cult. A revista de cultura mais longeva do Brasil precisa de você.

Deixe o seu comentário

TV Cult