Notícias de outras ilhas: Ronaldo Cagiano

Notícias de outras ilhas: Ronaldo Cagiano
O escritor Ronaldo Cagiano (Foto: DIvulgação)

 

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases, MG, formou-se em Direito em Brasília, onde viveu por 28 anos, tendo morando 10 anos em São Paulo e reside em Portugal. Colabora com resenhas e artigos em diversos jornais e revistas.  Estreou em 1989 com Palavra engajada (poesia). Entre seus livros, destacam-se: Dezembro indigesto (Vencedor do Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), Dicionário de pequenas solidões (Contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006),  O sol nas feridas (Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP/ Ed. Gato Bravo, Lisboa – 3º lugar no Prêmio Jabuti 2016) e O mundo sem explicação (Poesia, Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019).  Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as gerações – o conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de António Ramos Rosa, Zbigniew Herbert e Orides Fontela. A seção tem curadoria de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

Entre o português António Ramos Rosa (1924-2013), o polonês Zbigniew Herbert (1024-1998)   e a brasileira Orides Fontela (1940-1998) há um ponto de intercessão. Suas obras poéticas deflagram reflexões existenciais e metafísicas sobre um tempo e num mundo fatigados, distópicos e de seres deslocados geográfica e psicologicamente, na tênue fronteira entre o desconforto e o desespero diante do acúmulo de tragédias e passivos. São escrituras simbióticas, inquiridoras e que nos catapultam para um permanente sentimento de indignação. Leituras imprescindíveis, sobretudo nessa etapa em que vivemos, de inércia e impotência diante da miséria, das guerras, do drama dos refugiados, dos tantos apartheids e diásporas que nos afrontam e que se agudizam agora diante de um inimigo invisível, a pandemia, que a ninguém poupa. São poéticas ticas insurgentes e que incorporam, além do profundo sentido estético, um compromisso ético e humanista.

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Estou vivo
mas quero viver
Não quero salvar-me porque não posso salvar-me
porque a salvação não existe
Perdi o meu percurso
e tudo o que herdei de mim próprio
No mundo as palavras não compensam
a violência absurda do sofrimento
Na página elas podem ser a invenção
de um frémito perante um corpo nu,
É na palavra que se acende a minha vida
mas a minha vida sobra sempre como uma cauda cinzenta
Porque é o infortúnio a norma
e não há resgate para a morte?
O mundo é estranho, mas é irrefutável
na sua contínua sucessão que nos transcende
e passa sobre nós como se não existíssemos
Teremos acaso de nos unir e reinventar as nossas vidas
para que os deuses nasçam do nosso desamparo?
O silêncio conduz-nos à sua infinita fronteira
mas o ócio iluminado pode vogar na casa
como se estivéssemos entre palmeiras e araucárias
Toda viagem é um regresso ao ponto de partida
para partir de novo entre a água e o vento

António Ramos Rosa

Em Deambulações oblíquas, Quetzal Editores, 2001

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O nosso medo

Zbigniew Herbert

O nosso medo
não usa camisa de noite
não tem olhos de coruja
não levanta a tampa de um pequeno cofre
não apaga uma chama

nem tem o rosto de um cadáver

o nosso medo
é um pedaço de papel
descoberto no bolso
“avisar Wojcik
o esconderijo da rua Dluga está queimado”

o nosso medo
não se levanta nas asas da tempestade
não se pendura numa torre de igreja
é terra-a-terra

tem a forma
de uma trouxa feita à pressa
com roupa ainda quente
provisões frias
e uma arma

o nosso medo
não tem o rosto de um cadáver
os mortos são doces para nós
levamo-los aos ombros
dormimos sobre o mesmo cobertor
fechamos-lhes os olhos
retocamos-lhes os lábios
arranjamos um lugar seco
e queimamo-los

não demasiado fundo
nem demasiado à superfície

Em Escolhido pelas estrelas, Ed. Assírio & Alvim, 2009, tradução de Jorge Sousa Braga

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Destruição

Orides Fontela

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.
A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.
A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.

Em Poesia completa, Ed. Hedra, 2019


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