A ‘mediocracia brasileira’ e o Brasil que não hesita em resistir
(Arte Revista CULT)
“Quase tudo que é grave é difícil; e tudo é grave”, já dizia Rilke. Este alerta talvez nunca tenha servido tanto ao Brasil quanto nos tempos atuais. Mas não desistir de pensá-lo é uma obrigação. A sucessão vertiginosa de acontecimentos perversos impede quase que por completo o fôlego da reflexão. A destruição diária tem tornado difícil preservar a lucidez. O festival de besteiras que assola o país é inesgotável. Menos de um mês de governo, o ministro da Educação já disse que o “marxismo cultural faz mal à saúde”; o ministro da Casa Civil afirmou que “o risco de uma arma em casa é o mesmo de um liquidificador”; a ministra dos Direitos Humanos esbravejou que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”. Já a nomeada como ministra da Agricultura recebeu doações de um réu por assassinato de líder indígena e será responsável pela demarcação de terras indígenas. Há, sobretudo, o astrólogo reiteradamente citado por membros do governo como mais influente intelectual de todos, que acusa Newton de ter “espalhado a burrice”, contesta o heliocentrismo e a teoria da relatividade de Einstein; sem esquecer o coordenador do Exame Nacional Ensino Médio dizendo que Raskólnikov, personagem de Crime e Castigo, era um “típico estudante esquerdista influenciado por Nietzsche”. Nem precisamos entrar em sua base parlamentar afeita ao BBB: Bíblia, Bala e Boi. Enfim, a diversidade é grande.
A experiência política que se inicia no Brasil seria fascinante se vivêssemos noutro planeta e não estivéssemos com a maior floresta do mundo em perigo e se a política naturalizada de extermínio agora não tivesse virado plano deliberado de governo. Por medo de ser assassinado, um deputado federal reeleito, com enorme atuação em defesa da população LGBTQ+, desistiu do mandato e afirmou não pretender voltar ao país tão cedo. Após publicar sua decisão, o presidente da República se manifesta no Twitter dizendo: “Grande dia!”, seguido de um sinal de positivo.
O assassinato de Marielle Franco, parlamentar do Rio de Janeiro, depois 10 meses, segue sem qualquer esclarecimento, senão a de que familiares do policial militar suspeito da morte e de chefiar uma milícia no Rio de Janeiro trabalhavam no gabinete do filho do presidente Flávio Bolsonaro e de próxima relação com o clã.
Os exemplos se empilham a exaustão. Entretanto, insistimos eticamente de estar à altura do que acontece. Poderíamos começar apontando, pelo menos, a direção de duas questões fundamentais para tentar refletir sobre o Brasil atual: 1º) como a vitória de Bolsonaro foi possível e o que significa sua chegada ao poder – como viemos parar aqui? 2º) quais são as possíveis linhas de fuga (quais alternativas e resistências) a serem criadas?
As possibilidades de enfrentamento destas e de muitas outras questões são infinitas e as respostas sondáveis, pela profusão dos fatos, poderão ser desmentidas no momento seguinte. Porém, cabe arriscar ler o que se passa, exatamente valorizando a crítica radical da vida cotidiana, ou seja, pensar a transformação social como um exercício de atenção pleno das potências que ressoam nas situações que atravessamos.
O que ele faz ali? Ou sobre como não imaginamos que isso aconteceria
A pergunta é inafastável: como um grupo tão exótico e provinciano conseguiu chegar ao comando de um país tão complexo como o Brasil? Analisar o que trouxe o desejo social até o ponto de termos um governo Bolsonaro é antes de tudo um problema vital. Passa, sobretudo, por um lado, em não vê-lo como uma simples anomalia política e, por outro, não crer na exuberante ideia de que temos cinquenta e sete milhões de fascistas no Brasil.
O atual presidente é a própria corporificação da mediocridade que pode acompanhar o que há de pior em cada um. Seu mérito, este sim incontestável, foi encarnar a vulgaridade de um mal banal, a capacidade de ser reconhecido, não como melhor, mas como igual aos seus eleitores. Cada um de nós, afinal, conhece um tipo misógino, homofóbico e racista como Bolsonaro. Nada de excepcional nele, portanto. Todavia, sabemos o que isso significa. Adorno chamava esta figura de “pequeno grande homem”: sujeito capaz de dizer “as verdades”, sem “politicamente correto”, “como qualquer um”, com a burrice prosaica do senso comum e diluído em estereótipos superficiais. Este é “o padrão da propaganda fascista”: agressividade emocional que crie turba; escassez de ideias e a rigidez mecânica; em suma, alguém que ostente sem vergonha sua virtuosa ignorância. Por isso, não necessitará determinantemente de um programa positivo, mas de permanentes ameaças e medos que sustentem tanto sua onipotência quanto a ideia de que é mais um do povo.
Neste particular – há que se dizer – Bolsonaro não é Trump. É pior, e não poderá ser considerado o “Trump brasileiro”. Se ambos podem estar próximos pela capacidade de se exprimirem sem inibições suas mentalidades mesquinhas, Bolsonaro não pertence a qualquer elite com algum destaque particular, mesmo que duvidoso, como Trump. Passar quase três décadas no parlamento brasileiro, conseguindo aprovar dois projetos de lei, notabilizado por ser um personagem que ninguém levava a sério (chegou a dizer em 2011, quando se candidatou à presidência da Câmara de Deputados, obtendo 4 votos dos 513 possíveis: “eu não sou ninguém aqui”), é a consagração do homem médio. O “homem sem atributos” de Musil virou mito. O pequeno fascista é liberto de qualquer receio diante da indignação transformada em ódio.
Mas como isso acabou por ser canalizado? Como se forjou uma rede de afetos capazes de produzir Bolsonaro?
A mediocridade, de forma concreta, pode ser estampada naquele tipo de sujeito que, no Brasil, passou a sentir autorizado a repetir sem qualquer vergonha suas frases de ódio, principalmente aqueles que se sentiam acuados nos últimos tempos. Diga-se diretamente: o recalque do homem branco heterossexual emerge sempre que alguma disfunção atinge sua posição de privilégio que considera direito inalienável. Situação profundamente vivida no Brasil nos últimos anos: a ênfase nos avanços políticos reais dos movimentos feministas, negros e LGBTQ+. Não esqueçamos o quanto isso afeta os privilégios de classe, raça e gênero no Brasil: as cotas nas universidades, a exposição e enfrentamento da violência de gênero e a PEC das Domésticas (até 2012, uma categoria formada majoritariamente por mulheres negras e pobres não tinham os mesmos direitos básicos das demais, como limite na jornada de trabalho e seguro desemprego) são apenas alguns exemplos de onde o rancor se estabeleceu e o sintoma do reacionarismo se reuniu. Reação pelo ódio consagrada exatamente no que disse o presidente na posse: “Libertar a nação do politicamente correto”, ou seja, reforço da autorização expressa tanto de propagar seus sentimentos reprimidos de tripudiar minorias quanto de aniquilá-las. Opressões capilares autorizadas e reproduzidas que estampam a necropolítica brasileira. Bolsonaro materializou aquilo que sempre alimentou os fascismos nossos de cada dia.
O ódio como combustível político oferece ares quase determinantes para entender a “nova direita” no Brasil. Sua emergência soube muito bem entender os anseios que pairavam, e trabalhou a esperada “mudança” baseada no “retorno”. Noutros termos, souberam angariar o desespero dos tempos que correm. Assim, uma cartografia dos reacionarismos no Brasil não poderia ser feita ignorando o pano de fundo global da corrosão da confiança nas instituições políticas, fruto de um esgotamento da democracia parlamentar representativa. Deve-se saber identificar dentro do grande colapso liberal capitalista o surgimento das novas direitas.
No caso brasileiro, antissistema e antipetismo se uniram com Bolsonaro. Se uma alt-right possui uma retórica antissistema – seja desde uma xenofobia etnonacionalista (como no caso da Itália, Hungria e mesmo dos EUA) seja por um populismo antiestablishment, impulsionados por um debate midiático digital – em termos brasileiros, aquilo que se poderia chamar de “conservadorismo brasileiro contemporâneo” é muito heterogêneo. Transpõe uma simples conjunção de protofascismos. Há uma multiplicidade de frustrações e desesperanças, depois de um período de certa experiência social democrata que abriu espaço a vários grupos. Forjado pelo desamparo, como já foi apontado por várias análises, poderíamos identificar pelos menos três eixos que se cruzam: a) um recorte “cultural e moral”, expresso por uma moral cristã conservadora de tom evangélico-empreendedor, que cresceu onde uma Igreja Católica deixou de se encontrar com os mais pobres, e tragado pelas guerras culturais, totalmente refratário às conquistas de gênero por exemplo; b) um viés de “classe”, bem identificável pelo rechaço às reformas sociais e com medo da perda de privilégios, como já foi dito; c) uma vertente “geracional”, tanto aqueles mais velhos, dispostos à nostalgia da ordem pelo militarismo brasileiro, medo do “fantasma comunista” e saudosos da ditadura, quanto aqueles antissistêmicos jovens hoje mais acoplados ao neoliberalismo.
Não esqueçamos que tanto esperança quanto medo, cristalizado em ódio, são afetos reversíveis. Daí se pode entender por que estes agenciamentos puderam se dar.
O ambiente de um “capitalismo de plataforma” já deu excessivas provas da importância das redes sociais. Uma “algoritmocracia” já se dispôs como modelo político. No caso do Brasil, não precisaremos seguir muito as pistas do que pessoas evocavam no dia da posse em Brasília. Os gritos de “WhatsApp! WhatsApp! Facebook! Facebook!” sinalizam algo. Cambridge Analytica, Steve Banon e seus asseclas, seja juntos com Trump ou com Brexit, também não nos cansarão de lembrar. [Aos italianos mais ainda, vide o The Movement de Banon agora com seu templo populista, a “Certosa di Trisulti”, em Collepardo, pronta a atuar nas eleições europeias de maio.
No caso Bolsonaro, ainda muito mais no futuro virá à tona quanto à manipulação de fake news através de grupos de WhatApp financiados de maneira nada clara. Apenas lembremos por ora que o “Chicago boy” de Bolsonaro, o super-ministro da Economia Paulo Guedes, um economista medíocre até entre seus pares – para além de recapitular a união orgânica entre militares e neoliberalismo de catástrofe, como na ditadura Pinochet no Chile – ostenta profunda amizade com Jorge Selume Zaror, colega de Guedes em Chicago, antigo diretor de orçamento de Pinochet e que levou Guedes para dar aulas no Chile. Seu filho coincidentemente hoje também é secretário de comunicação do Chile e dono da Artool, maior empresa chilena de Big Data, empregado durante anos na Cambridge Analityca. As imbricações de uma tecnopolítica com este neoliberalismo autoritário são um elemento gigante nas dinâmicas governamentais atuais.
Por outro lado, compreender o “bolsonarismo” passa por entender a genealogia lulista. Ele é uma espécie de difração do lulismo. Se o Brasil foi a última experiência das chamadas esquerdas no poder no século 20, através de um capitalismo de Estado, interessado menos em reduzir desigualdades e mais propenso a incrementar a cidadania pelo consumo, independente dos seus inegáveis avanços, deve-se atentar antes para as contradições do PT no poder, para depois examinar uma espécie de “negacionismo reativo” que se abateu sobre ele, especialmente quanto a perceber seu próprios erros. A lista seria demasiadamente extensa de equívocos, mas de todo modo, em grande medida a autocrítica sempre requerida e nunca realizada por parte do PT, passaria, em termos gerais, por perceber a sua indiferenciação política quanto aos demais espectros, inclusive de pautas de direita. Fica demasiadamente difícil saber o que a esquerda é quando não se propõe distanciar radicalmente daquilo que a direita propõe.
A começar pele negação peremptória de casos de corrupção, mesmo que analisados de modo seletivo pelas dinâmicas midiáticas, legislativas e judiciais parciais. O paradigma desenvolvimentista já havia feito Dilma solapar direitos trabalhistas muito antes; diversos movimentos sociais tornaram-se mais governo do que alavanca de reivindicações em ambos os governos – movimentos sociais que agora poderão ser perseguidos pela mesma “lei antiterrorismo” sancionada por Dilma; os notórios laços petistas com a bancada ruralista levaram ao desmantelamento da Fundação Nacional do Índio muito antes da demarcação das terras indígenas decretada por Bolsonaro ficar a cargo do Ministério da Agricultura – sem esquecer que o governo Dilma foi o que menos demarcou terras indígenas na história do Brasil. Mudança climática, para o governo atual, é caso de um “complô marxista”; antes, para Lula/Dilma,sequer passou perto de ser compreendido como assunto deles. Especificamente com relação à Amazônia, reeditaram com êxito a versão da ditadura brasileira das grandes obras hidrelétricas (como Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires etc). Vale referir as comunidades urbanas pobres expulsas de suas casas pelos megaeventos superfaturados da Copa do Mundo e Olimpíadas. Ainda destaque especial a “Lei de Drogas” editada em 2006 por Lula que contribuiu em grande parte para o encarceramento em massa no Brasil (mais de 750.000 presos), notadamente jovens, negros de regiões periféricas, em especial mulheres (mais de 700% de aumento no encarceramento em 16 anos).
Não obstante, de modo algum, deve-se ver as experiências petistas como iguais às anteriores. Repetimos: o avanço nas políticas afirmativas; o acesso ao ensino superior, a expansão de políticas de renda como o Bolsa Família; o aumento real do salário mínimo e a consequente redução da miséria e da pobreza (42 milhões ingressam na classe média, salário mínimo ficou 50% acima da inflação), de fato, mudaram o país. Problema é não ver o limite claro que a gestão de um neoliberalismo com rosto mais humano pode ter, ou, para dizer noutros termos, uma gestão reformista com sensibilidade social – uma política de capitalização dos pobres – possui. Se os avanços notáveis em termos de acesso pelo consumo se deram, o ritmo de crescimento da parcela mais rica da população também manteve-se intacto (nunca os bancos lucraram tanto na história do Brasil); a desigualdade não diminuiu, o que pressionou o custo de vida para cima, generalizando o fenômeno bem descrito como “produção do precariado”. Em resumo, nada houve de constituição de um núcleo de serviços públicos de qualidade e com consistência no Brasil.
Assim, como acreditar nos acertos se os erros são negados ou as contradições caladas? E como achar que a população não tem discernimento ou que foram enganadas se politicamente as esquerdas não se demonstram ser diferentes? A partir daí poderá se entender um pouco melhor a formação de um nexo que os fluxos conservadores souberam canalizar seletivamente a repulsa à corrupção diretamente ao PT, o preconceito de classe e o efeito rebote da frustração pelos limites da inclusão pelo consumo. A autocrítica como compromisso público e prática política, e não como expiação de pecados, é um trajeto importante para pensar as alternativas que podemos ter.
Chamemos, com a intensidade que for, o atual governo brasileiro de “momento neofascista do neoliberalismo” ou uma forma de “novo neoliberalismo autoritário”. Quaisquer dessas aproximações apenas espelham a estratégia política peculiar de um regime de “presidencialismo de ocupação”, ou seja, a visão da nação como um território a ser ocupado militarmente, onde qualquer opositor é um traidor da pátria. Sua logística teológica e militar impõe, portanto, a fabricação permanente de inimigos. Lembremos que o então candidato Bolsonaro prometeu enviar a esquerda, senão para a prisão ou exílio, para a “ponta da praia” (alusão ao lugar onde se jogavam os cadáveres dos opositores políticos na ditadura militar). Para além da retórica que se poderia alegar, o elemento de uma visão eliminacionista da política é central.
E todo medíocre sabe que no fundo assim o é, por isso precisa reafirmar os desastres e forjar os inimigos.
Estamos diante de algo novo, peculiar organização e exercício de poder também em escala planetária, e a consolidação do caso brasileiro é de suma importância. Talvez o que torne o caso brasileiro pior e o diferencie é a tremenda condição de Bolsonaro em poder melhor integrar o “novo estado de legalidade” da exceção. No poder, seus limites de constrangimento institucionais são quase nulos frente, por exemplo, a Trump ou Salvini – mais uma enorme distância. Gerindo e produzindo crises, Bolsonaro tem o poder de integrar, talvez como nunca, medidas de urgência ao modus operandi trivial do governo, um modo de estado de direito que integrará em sua legislação a situação de guerra econômica e policial permanente. Não meramente a construção de um sistema de exceção – como historicamente consolidado no Brasil desde sempre – mas um sistema de normas, por assim dizer, que proíbe a exceção. Se o país sempre se consagrou por matar seus pobres, negros, suas minorias em direitos, seus trabalhadores rurais, seus ativistas e jornalistas, o estado do desastre agora inaugura um novo ciclo de violência política: o Estado escancaradamente convertido numa arma de guerra contra populações mais aguda ainda.
Para onde podemos ir: quais alternativas a serem criadas?
Em apurada síntese, até aqui, não devemos perder de vista o mérito de Bolsonaro em ter sabido aliar a escalada repressiva tradicional em contexto brasileiro com a energia da rebeldia social liberada ao menos depois de 2013 no Brasil. Perceber os caminhos alternativos para a atual catástrofe brasileira deverá passar pela atenção à força das demandas anti-institucionais. Não obstante, até aqui, ao que tudo indica, não seria temerário arriscar que ainda falta uma esquerda capaz de enfrentar Bolsonaro e principalmente uma resposta consistente que não esteja atrelada aos ritmos das estratégias da direita no poder.
Porém, sempre há tempo. Os ecos de 2013 persistem. A contingência das revoltas e o fervilhar das mobilizações sempre retornam. No Brasil, a maré da Primavera Árabe e dos Occupy traduzidas por junho de 2013 foram profundamente rechaçadas – lembremos que era Fernando Haddad o prefeito da cidade de São Paulo, maior foco de repressão à época. Não desperdiçar a experiência é fundamental. As revoltas eclodirão e com mais força ainda nos instantes próximos. Tenhamos a sabedoria de vivê-las.
Por outro lado, diante de um governo Bolsonaro, misto entre um patético despreparado e um poderoso representante do neoliberalismo de catástrofe, uma das principais armadilhas para forjar alternativas de solidariedades e resistências comuns é se iludir que ele não irá durar, que as instituições ou a realidade irão freá-lo. Ele é a parte torturadora do regime militar, ninguém dali vai domá-lo. Isso alarga ainda mais o flanco aberto que parece existir para a ação hoje, principalmente tendo em vista os primeiros dias governo. Apostar que a selvageria irá ser amansada por um sistema político destroçado é um erro grave, pois não percebe que para se manter no poder ele retira seu fôlego exatamente do seu colapso. E, mais, esta postura enfraquece sobremaneira a capacidade de mobilização e proposição.
O estado de desencanto é profundo com as próprias instituições políticas e isto não se esgotará. E, se por um lado, Bolsonaro é fruto dessa conjugação antiestablisment/antipetista e tentará manter sua força a partir disso, por outro lado, seu vazio de promessas permite a todos sonhar grande, abrindo espaços tanto para que se esperem resultados enormes de transformação que não virão, como também para um abismo de frustrações, horizonte que já começa a ser visto em menos de um mês de governo. O caldo da revolta é enorme quando se pode sonhar tudo já que não se prometeu nada.
A ambiguidade é extremamente frutífera neste instante. Mas não esperemos que um concerto democrático ancorado nos partidos possa dar algum tipo de resposta satisfatória no momento, principalmente porque não parecem, de fato, quererem enfrentar propriamente o capitalismo contemporâneo em sua fase de neoliberalismo perverso. É uma armadilha, movida pelo desespero, priorizar aliança com o “centro”, o que representaria tentar voltar a um falido presidencialismo de coalizão que culminou no próprio surgimento das direitas. Erro grave será apostar, “por estarmos todos em perigo”, na “união” contra os novos populismos de direita. Mesmo que conseguíssemos, apenas voltaríamos à mesma situação que ensejou o seu nascimento. Valerá mais a pena buscar esta imprescindível e atual luta contra a opressão, não através da improvável regeneração dos partidos, que fazem parte da mesma crise de representação, mas das multidões que se autoconvocam, das constelações sociais e políticas que cooperam, cuidam e colaboram fomentando múltiplas formas de afeto.
Desativar afetos reativos está no cerne dos embriões de uma alternativa real para enfrentar Bolsonaro.
As fagulhas já foram lançadas para uma movimentação com estratégia, consistência e propósito. Se o reacionarismo brasileiro, como dito, também foi resultado da explosão feminista, LGBTQ+, antirracista, o furo na bolha institucional passa por aí. Lembremos a rede “Mulheres unidas contra Bolsonaro”, com mais de 4 milhões de mulheres, que fez eclodir o #EleNao na última semana antes da primeira volta das eleições. A onda feminista relativamente espontânea venceu de alguma maneira, pois além de fazer acreditar, faz ainda lembrar a vocação internacionalista das esquerdas articuladas de vários modos em diferentes contextos pelo mundo.
Não serão à toa os ataques privilegiados do governo para “acabar com a ideologia de gênero” ou “lutar contra o lixo marxista nas escolas”, como dito pelo presidente eleito no discurso de posse. Num governo em que a guerra impera, é preciso fazer calar de quem nunca se acomodou com as regressões autoritárias ou aos arranjos populistas que marcaram nossa história. No fundo da sua mediocridade, esta associação macabra de militares, pastores, latifundiários e banqueiros sabe bem de onde pode vir o seu fim.
Assim, a insistência deve passar, sobretudo, pela indignação, não recoberta pela mera reação, mas à altura das linhas de força que a esquerda tradicional não consegue captar. Enfrentar as contradições de uma esquerda no poder; fazer o luto da própria hegemonia lulista; abandonar os projetos personalistas e as curadorias partidárias – enfim, lutar contra uma espécie de servidão voluntária, parece fazer parte desta tarefa.
Fazer a resistência (é) criar corpo.
Resistir não é reagir simplesmente, ou seja, um fraco desdobramento passivo da impotência antipolítica. É, sim, sermos capazes de estar à altura da indignação social, algo que de uns anos para cá não foi feito no Brasil. Repita-se: a brecha de junho de 2013, onde se apresentava a “sociedade contra o Estado”, não foi aproveitada e acabou amplamente barrada pela esquerda institucionalizada. Grande parte do antipetismo foi resultado de o partido não ter sabido reconhecer as manifestações exatamente como propulsoras das transformações estruturais do país, preferindo aderir ao que havia de mais retrógrado na casta política brasileira, abrindo horizonte para que, pelo marketing digital, o antiestablishment fosse agenciado em outra direção.
Fazer a resistência criar corpo é, antes, ter sensibilidade, ser capaz de agenciar o desejo, criando a revolta que povoa corações e mentes.
E se pudéssemos arriscar, o voto em Bolsonaro foi menos fruto do antipetismo do que da territorialização retrógrada dos fluxos e linhas de fuga que junho de 2013 ensaiou. Necessário agora pesquisar os germens da indignação que virá, exatamente porque Bolsonaro continua a ser o retrato mais fiel do establishment político. Trata-se de mapear o conjunto de crenças e desejos sociais numa nova vidência e gestar as condições para uma nova sensibilidade coletiva.
Resistência hoje é condição de conectar o mais possível com nossa condição vivente, afetar-se pela percepção da existência social. Nada de mais concreto que habitar a vida o mais plenamente possível, numa espécie de ressonância intensiva entre afetos. Uma luta micropolítica não poderá ser ingênua e nem será oposta a um embate macropolítico. O novo e desafiador neste momento, no entanto, é que não há como crer num porvir harmonioso e sem conflitos, mas dar-se conta de que a vida política é uma luta constante entre forças ativas e reativas, luta contra forças que querem destruir a vida, não somente na sociedade, mas em nossa própria subjetividade. Algo que sempre foi claro e presente na luta dos negros, indígenas, de mulheres, de LGBTQ+ etc.
Diretamente, em alguma medida, em qualquer espaço a insurreição passa pela criação de outras formas de viver organizadas desde lugares de subalternidade, ou seja, composição de coletivos efêmeros, porém com uma mesma frequência de afetos, que se agitam em corpos que se juntam. Fazer vibrar estes embriões que querem germinar requer ações que lhes darão forma. Tais ações não se dão sozinhas, por isso necessitam de experimentações coletivas que as produzam. Aqui está a articulação indispensável e nova entre dinâmicas macro e micropolíticas – por ambas dimensões, a resistência faz corpo. Vale a provocação de que precisamente nestes momentos em que figuras bizarras como Bolsonaro assumem protagonismo é que surge a maior possibilidade de uma esquerda radical emergir, sem medo de dizer a que veio e livre das amarras dos velhos pactos políticos. É preciso, todavia, ter a ousadia de enfrentar e propor um novo pacto social.
Mas como? Reativando o desejo da relação entre corpos que falam. Podemos falar muito em redes sociais, mas não nos encontrar efetivamente. A experiência de corpos que se encontram é que poderá disputar as permanentes metamorfoses dos “fascismos que vêm”. Se o fascismo é antes um modo de vida que um regime político (que pode ser inclusive democrático), desativar paixões tristes no terreno da vida cotidiana torna-se uma ação principal. Deleuze lembrava que um traço fundamental da esquerda passava por uma forma especial de sensibilidade, de experimentar o mundo de modo diferente. E repita-se: experimentação não se faz só, é germinação que pede produção. Portanto, indispensável que se articulem como resistências. Dinâmicas de auto-organização popular são efeitos de ressensibilização social através da criação de um “comum sensível”. Em termos mais simples, a disputa no e para um campo social novo é dada exatamente pela modulação dos afetos coletivos: onde a crise põe ressentimento, o desamparo de “cada um por si”; a ativação social dispõe uma repolitização, que já está aí, solidariedade e apoio mútuos que formam laços de ação coletiva.
Repolitização que já está aí, desde a ideia de que a sociedade não se transforma desde cima, se joga por todos os lados, não desde instâncias privilegiadas estatais, mas no cotidiano das relações de poder que configuram nossa maneira de entender o que é sexualidade, trabalho, educação, saúde etc. E este tipo de transformação está ao alcance de todos, se joga na vida cotidiana dos gestos e decisões que somos implicados. Se, neste período obscuro pelo qual passa não somente o Brasil, o mal estar social antissistema foi canalizado pela direita, não se trata apenas de achar uma nova gramática, reduzir a política a uma “comunicação eleitoral”, que faça seus votantes “despertarem” e convencê-los a mudar. As direitas crescem não por terem uma política comunicativa melhor – seus avatares, fake news e o esvaziamento da linguagem lançados em larga escala são a prova disso. Elas não estão interessadas em transmitir algo a ser refletivo, mas se apresentaram como lugar adequado para depositar os anseios sociais. Noutros termos, o desafio a um contrapoder radicalmente antifascista passa por produzir subjetividades, criar sensibilidades novas, formas de ver e sentir o mundo com crenças e valores com os quais, apenas depois, se possa sintonizar uma mensagem eleitoral. Não se trata de abandonar a esfera representativa, muito pelo contrário, mas de refazê-la e repensá-la como modulação de afetos coletivos para transformar as coisas.
Finalmente, dispor um conjunto de singularidades ligadas em constelação, isto acaba por ser o desafio constante. Segundo Antonio Negri, será este poder cooperativo que levará a multidão em direção ao comum. Os circuitos de medo, assim, são o elemento mais nocivo a se enfrentar. Não ter medo é primordial para não ceder aos fascismos e avançar. É a alegria e a força de estarmos juntos contra o medo coagulado em ódio. A força da imaginação criativa nunca deixou de passar antes por uma enorme dose de desamparo. Não obstante, cabe assumir a luta, pela força difusa e múltipla que conduza à passagem para uma esquerda radicalmente antifascista.
Augusto Jobim é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia na PUCRS