“Menino veste azul, menina veste rosa”: uma polêmica inútil?

“Menino veste azul, menina veste rosa”: uma polêmica inútil?
As declarações da Ministra Damares têm reflexo na vida do menino afeminado que usa cor de rosa e sofre bullying (Foto: Valter Campanato/Ag. Brasil)

 

“Menino veste azul, menina veste rosa”. Com essa simples frase, a Ministra Damares sintetizou a “nova era” em que estamos ingressando no Brasil.

De nova, sabemos que essa era do binarismo de gênero e de sexualidade não tem nada. Tampouco é nova a posição de setores progressistas que estão diminuindo e relativizando a gravidade das declarações de uma autoridade do Estado brasileiro. Aliás, trata-se da primeira fala pública de uma ministra de direitos humanos.

“Diversionismo ideológico”, “cortina de fumaça” e “confusão no debate público” são fórmulas que pessoas de esquerda têm usado para se referir às polêmicas geradas pela Ministra Damares.

Boa parte da esquerda brasileira ainda não entendeu que as agendas de gênero e sexualidade são centrais em qualquer projeto de emancipação. Identidades, que não a de classe, são vistas como “pequenos dramas da humanidade”, como lutas particulares e fragmentárias, geradoras de divisões internas e enfraquecimento do nosso potencial de mobilização social.

Essa posição, que foi cultivada por parte relevante das esquerdas brasileiras, resumia-se na hierarquização entre, de um lado, a luta maior e central e, de outro, as lutas menores e acessórias. Não entendiam que capitalismo não se resume à economia, mas também abrange valores e ideologias; ignoravam que identidades se cruzam de modo interseccional e que falar de classe, sobretudo num Brasil tão desigual e violento, é falar necessariamente de raça, gênero e sexualidade. Inclusive pelas perspectivas emancipatórias que tais alianças cruzadas podem nos permitir.

Atualmente, com a ascensão mundial da extrema direita, ressurge, sob outra roupagem, o discurso de que são os grupos identitários os maiores responsáveis pela reação conservadora. Essa é a moda lá fora e que um monte de gente está importando sem querer entender o que é o Brasil.

Se essa crítica faz algum sentido no contexto dos EUA, em que uma espécie de hiperidentitarismo foi produzido e ressignificado pelo capitalismo a partir das lutas pelos direitos civis, nunca chegamos perto disso em nosso país. Aqui padecemos do mal contrário, de um tipo de hipoidentitarismo, ou seja, um discurso de desqualificação, inclusive nas esquerdas, da luta pelo direito à diferença. A direita diz que queremos privilégios, setores da esquerda dizem que queremos dividir e desviar o rumo da luta maior.

As declarações da Ministra Damares têm reflexo na vida do menino afeminado que usa cor de rosa e sofre bullying, da menina trans que não consegue ir na escola, das mulheres que são espancadas por seus maridos. Isso não é diversionismo. Isso é efeito concreto de ideologia na vida das pessoas.

Qualificar o debate sobre gênero e sexualidade, retirando-o dos termos simplistas e perversos da fala da Ministra, é sim tarefa central dos nossos tempos. E isso não significa negligenciar a resistência contra reformas trabalhista, da previdência e outros ataques a direitos sociais. Ser de esquerda sempre foi um desafio de conjugar múltiplas pautas e agendas, sem hierarquizar e caracterizar injustiças simbólicas de diversionismo.

Diversionismo seria criar polêmicas sem reflexo na realidade. Seria falar que o sol é quadrado. Isso sim é uma polêmica inútil e irrelevante. Uma fala que reafirma desigualdades e papéis de gênero e sexualidade deveria ser veementemente combatida por uma esquerda que mereça esse nome no século XXI.

Podemos e devemos racionalizar as formas de ação e reação diante das estratégias das novas direitas no mundo todo. Nossa energia e capacidade são limitadas. Mas enfrentar esse desafio deixando pessoas pra trás não me parece a solução.

Afinal, a ideia não era justamente “ninguém solta a mão de ninguém”?


> Leia a coluna de Renan Quinalha no site da CULT

(1) Comentário

  1. Perfeito Renan Quinalha, eu sou gay e sofri desde muito cedo a intolerância e o preconceito da família, fui vítima de bullying homofóbico por parentes e sofri violência sexual por um primo. É triste e lamentável que uma uma ministra faça um discurso tão raso quanto nefasto que pode ser o combustível para alimentar a sanha de intolerância por parte das pessoas. Precisamos nos unir e combatermos com todas as nossas forças qualquer tentativa de nós colocar de volta ao armário.

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