Intervenção militar, já

Intervenção militar, já
Caminhoneiros ocupam trecho da Rodovia Presidente Dutra Rio de Janeiro (Foto Tomaz Silva / Agência Brasil)

 

O que deixou todo mundo perplexo esta semana não foi a morte confirmada do governo Temer, mas a vivacidade do pedido de intervenção militar feito pelos caminhoneiros e seus apoiadores em um protesto que parou o país. Estávamos acostumados com movimentos de massa protagonizados por garotos digitalmente descolados desde 2013, mas a greve de maio de 2018 é um movimento de tiozões do lumpemproletariado da camionagem. Reivindicando não pagar a conta da política de preços da Petrobras, a menina dos olhos dos neoliberais que apoiaram o impeachment para salvar o Brasil.

Os caminhoneiros têm uma pauta ainda mais intuitivamente aceitável do que aquela dos que, em junho de 2013, pediam desculpas, mas estavam a consertar o país. Afinal, o peão pagar combustível em dólar e ganhar em real parece uma conta que não fecha, embora os novos liberais brasileiros digam que se não fosse para impedir que o Estado subsidiasse combustíveis nem teriam se dado ao trabalho de sair da cama para colocar um nadinha como Michel Miguel no lugar da presidente eleita.

Mas que se dane a pauta inicial. Em 2013, os manifestantes tiveram a revelação uns dias depois que a tinha iniciado de que faziam o que faziam não pelos vinte centavos de aumento da tarifa de ônibus, mas por direitos e para mudar o país. De forma semelhante, em 2018, alguns dias depois do início dos protestos, já não é só pelos 46 centavos de desconto no preço do diesel e por melhores condições de trabalho, mas pelo fim deste governo e destes políticos, e para consertar o Brasil. Por meio de intervenção militar. De fato, nos últimos três dias, o que mais circulou em mídias digitais foram vídeos, faixas, áudios e fotos de caminhoneiros exigindo exatamente isso: intervenção militar no governo do Brasil.

A reivindicação é, à primeira vista, chocante. Primeiro, porque demandas desta natureza, colocada em um protesto popular, soam como algo fora do lugar. Não faz sistema um combinado de redução do preço do diesel com súplicas de “intervenção militar, já”. Alguma coisa está fora do eixo. Segundo, porque a reivindicação é precedida por um período em que o negacionismo histórico da ditadura militar tem se intensificado enormemente. Reavaliações, reconsiderações, minimizações, justificações são agora da ordem do dia em certos ambientes sociais, inclusive os digitais.

Terceiro, porque a esquerda, que adora complôs, já vinha cantando essa pedra desde o início da greve: protestos de caminhoneiros já precederam golpes de Estado de direita na América Latina, melhor ficar de orelhas em pé. Quarto, porque embora o movimento dos caminhoneiros inclua, aparentemente, todo tipo de gente, de “lulalivristas” a bolsonaristas, o que circulou principalmente em vídeos do WhatsApp e sites de mídias sociais mostrava uma clara dominância daquela peculiar amálgama entre bolsominions e o sentimento antipolítica.

Bolsonaro, inclusive, nadou de braçada no movimento, por afinidade ideológica certamente, e os bolsonaristas foram a vanguarda do apoio total à greve dos caminheiros desde o início. Foi ele, provavelmente, o político que mais faturou com estes protestos e o fetiche por ditaduras e militares é uma inegável paixão do bolsonarismo. Juntando uma coisa e outra, nos assustamos.

A reivindicação de ruptura militar na ordem democrática, contudo, vem de mais longe, antes mesmo que Bolsonaro se tornasse o líder da horda. Mais precisamente, ganham visibilidade em junho de 2013, quando o “Socorro, governo militar” desfilou nas passeatas e nas telas de celulares e computadores. Nas manifestações de 2015 e 2016, pela saída de Dilma, rivalizavam com as outras forças de direita envolvidas na operação. E chegou a haver conflito, em uma manifestação em São Paulo, entre intervencionistas e seguidores de Lobão, que naquele momento se considerava o grande líder do movimento “Fora, Dilma”.

Desde então, não há protesto, manifestação, militância nas ruas, ativismo digital em que o intervencionismo militar não esteja presente. E, pelo que vemos com o fortalecimento do revisionismo histórico acerca dos Anos de Chumbo, tem sido protagonizado sobretudo por jovens e está crescendo.
A este ponto, há duas versões sobre o conteúdo real da reivindicação. A versão mais benevolente diz que, para além da retórica, as pessoas não querem realmente uma ditadura, com tortura, violação de direitos e o fim da democracia. Ou, pelo menos, não querem o pacote completo. Querem “apenas” uma intervenção autoritária que zere o sistema político e o reinicie.

Haveria ali puramente um sentimento antipolítica, movido por raiva, frustração e ignorância, que consegue projetar o futuro apenas até o ponto em que o sistema é reiniciado. É movido pelo sentido do “ativismo urgente” – alguém precisa fazer alguma coisa – e não de um “consequencialismo esclarecido”, pois quem o propõe não é capaz de imaginar ou prever o que pode vir depois. Como uma criança inconsequente, sua fúria política leva-o apenas à pars destruens (a parte que remove o que incomoda, que a destrói); não há pars construens.

Não tenho simpatias pela infantilização do outro em política nem dou desconto por ignorância nesta área, mas compreendo que a urgência do ativismo, com frequência, torna as pessoas inconsequentes. Indesculpavelmente inconsequentes. Além disso, as minhas andanças pelo monitoramento das conversas alheias em mídias digitais me revelaram que muitos têm, sim, afinidade ideológica com o que reivindicam e desejam, conscientemente, o que virá depois.

Os argumentos chegam tranquilamente, por exemplo, até a perspectiva de que a intervenção militar anularia todos os mandatos em curso e cancelaria todas as autoridades constituídas no Estado. Com espaço aí para um vocabulário fortemente punitivo, de forma que “dar um corretivo” ou “descer o cacete nos políticos safados”, não são expressões raras. Mas alcança também a ideia de que toda a corrupção seria cancelada. O que é baseado na fantasia que se tornou corrente de que “no tempo dos militares não se tinha notícia de corrupção”. Há aqui “apenas” a ideia de zerar o jogo e reiniciar o sistema político? Mas, o que pode significar “apenas” quando, na verdade, se trata de uma solução extremamente autoritária, claramente autocrática?

A ideia do pai autoritário que entra em cena para reordenar severamente o caos e restabelecer uma ordem segura para todas as coisas é o novo fetichismo político brasileiro e nada tem de compatível com a democracia. Revela a face assustadoramente autoritária das manifestações políticas de massa deste ciclo político, que começa em junho de 2013, com as maiores manifestações de rua já havidas no país, e completa o seu quinto aniversário justamente com a greve de maio de 2018, certamente o movimento grevista de maior alcance territorial e que mais afetou a população brasileira. Cinco anos de amadurecimento e disseminação do antipetismo, da antipolítica e do autoritarismo não teriam podido produzir um fruto mais expressivo.

Por outro lado, cabe a pergunta se quem grita por “intervenção militar, já!” realmente quer apenas “intervenção militar”, este mecanismo previsto na Constituição, a ser empregado sob requisição das autoridades constituídas e controlada por regras e limites? Pois uma intervenção dessas já a temos funcionando, inocuamente, no Rio de Janeiro, decretada pelo Comandante-em-Chefe das Forças Armadas do Brasil, o presidente Michel Miguel, e solenemente ignorada por milicianos e traficantes.

Ora, é claro que não se trata disso. Não querem intervenção militar do governo, mas intervenção militar no governo. Querem é o coturno das Forças Armadas pisando nas instituições formais da democracia liberal. Vocês não podem imaginar o que tem de gente mandando mensagens diretamente a @exercitooficial, @Gen_VillasBoas, @GeneralGirao, @Gen_Ex_Freitas e @CmdoCML avisando que o país exige e apoia uma intervenção militar contra o governo civil. Literalmente, querem um golpe de Estado por mão militar. “Intervenção militar” é apenas a expressão palatável mais à mão e mais uma contribuição de Michel Temer ao vocabulário popular brasileiro.

Para contornar a objeção de que “manifestante pedindo golpe militar é o mesmo que porco pedir que seja feito mais bacon”, os sábios da extrema-direita começaram a lapidar, retoricamente, a distinção entre “intervenção militar” (entenda-se, golpe militar) e ditadura militar, para esfregar na cara dos que demonstram algum escrúpulo. “Intervenção militar”, dizem, “é quando as Forças Armadas intervêm no governo, para derrubá-lo; ditadura é quando tomam o poder de forma mais opressora (sic). Uma coisa nada tem a ver com outra”.

Então, ficamos combinados assim: não são a favor de uma ditadura, são só 100% a favor de uma intervenção militar, para cancelar este governo, este Congresso e o Judiciário. Afinal, explicam, não estamos mais em 1964 e os militares de hoje são de outra extração, não gostam de execuções e torturas. Assim que terminarem a faxina, suponho, pedirão licença e irão embora, deixando para trás uma democracia novinha em folha e desprovida de corrupção.

Não obstante isto, o que a reivindicação por intervenção militar está fazendo em uma manifestação de caminhoneiros? Não é complicado entender. A disseminação da reivindicação de intervenção militar, pari passu como o negacionismo histórico dos horrores da ditadura de 1964, é a última forma dada ao sentimento de total desprezo à classe política e à política institucional em geral. O lumpesinato da camionagem é só mais um dos grupos sociais tradicionalmente pouco interessados em acompanhar a política e em se engajar nela, mas que, de repente, como todo mundo neste país, viu-se obrigado a ter uma opinião sobre a política e os seus atores. A opinião resultante não foi boa, “os políticos são detestáveis”, descobriram. Explicavam-se antes pela apatia e pelo desinteresse pela política, agora se movem pelo desprezo e pelo ódio aos políticos “que estão aí” e à política “que se faz”. É o Movimento Odiamos Todos os Políticos, Todos os Partidos, Todas as Instituições da Política. Odiamos a política.

O Brasil é um laboratório de política a céu aberto. Basta abrir os olhos. E uma das coisas que aprendemos nestes últimos anos é que quando um contingente muito grande de pessoas que não gostavam de política é forçado a tomar uma posição política, seja em virtude da polarização política e/ou de crises sociais e econômicas que só podem ser resolvidas politicamente, como agora, este contingente continua detestando política. Mas agora não a detesta abstratamente; vai identificar um alvo concreto para o seu desprezo e para a sua raiva. E atacá-lo até que seja destruído. Simbolicamente, se não houver jeito; realmente, se possível.

2013 foi o ano em que o Gigante Acordou da sua letargia, do seu longo desinteresse e do seu atávico desprezo pela política. Já prontamente colocaram um alvo no governo de então, vez que “tudo o que está errado no país” só pode ser culpa do governo, claro. Abaixo o governo. Entre 2014 e 2015 a corrupção da política e o PT eram os objetos a serem odiados. A antipolítica genérica se converte, então, em antipetismo. Fora, Dilma, e leva o PT junto. E assim continuou em 2016. Em 2017, após as denúncias do procurador Janot, Aécio, Temer e a sua turma foram incluídos como alvos oficiais no ódio da antipolítica. Fora, Temer. O foco, que já se ampliara para incluir Eduardo Cunha em 2016, fica ainda mais amplo. E por aí vai.

Em maio de 2018, na greve dos caminhoneiros, pela primeira vez em cinco anos, o alvo não esteve pendurado no pescoço do PT. Agora, já se pode odiar genericamente todos os políticos. A este ponto, o “Fora, Dilma” e o “Lula na cadeia” já não aplacam o sentimento de desprezo aos políticos. Este mês de maio foi quando descobrimos que o antipetismo já não basta para saciar a fúria da antipolítica. Nem mesmo o “Fora, Temer” é suficiente. A reivindicação de intervenção militar é, neste sentido, basicamente um “Fora, todos”: fora, governo, políticos e instituições; fora, STF. O pedido por intervenção militar é, no fundo, uma demanda de que a política seja zerada e o sistema político seja reiniciado.

(2) Comentários

  1. Wilson Gomes retratou fielmente o clamor de “intervenção militar” pelo povo brasileiro, sofrido com tantos descalabros
    nos Três Poderes, na esperança de “zerar” o que vivemos agora, destituindo os politicos de seus cargos, na esperança de se iniciar uma nova política mais humana, justa e democrática.

  2. Defendo a intervenção literária, como sendo ela, o meio viável para tirar os ignorantes que pedem intervenção militar da cegueira. Só quem não sabe de história, ou melhor, do mais cruel que ela fala, é quem aceita repressão militar, ditadura etc

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