Para viver no fim do mundo
(Colagem: Laura Teixeira)
A edição e a organização deste dossiê se orientaram pela constatação de um paradoxo: 2020 é ao mesmo tempo um ano para ser esquecido e um ano para não esquecer, contradição que se apresenta como um desafio para nossa compreensão de memória, de luto e de esquecimento. Para não esquecer, escrevemos. Para esquecer, também escrevemos, deixando registrado aquilo que poderá ser lido sobre nós no futuro.
Se quisermos levar a sério a hipótese do filósofo Paulo Arantes, vivemos um tempo de fim. A seguir por esse caminho, 2020 apenas evidenciou que viver no tempo do fim é viver à espera, mas sem esperança. Levar a sério as definições de viver no tempo do fim de mundo exige começar fazendo o luto coletivo da morte, por Covid-19, de mais de 1,5 milhão de pessoas no planeta, sendo quase 200 mil no Brasil, até meados de dezembro. O trabalho de luto – definido por Sigmund Freud como reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração, como, no argumento deste texto, a ideia de mundo – exige primeiro aceitar a prova de realidade da perda.
Na prova de realidade, perdemos pessoas, perdemos o mundo tal qual o conhecíamos e o futuro como o esperávamos. “Mas quem, nós?”, perguntava o filósofo Jacques Derrida já no final dos anos 1960, em sua crítica ao humanismo como pensamento delimitador de quem são os humanos contemplados pelo conceito de humano. Para a grande maioria das pessoas que vive neste mundo, o fim, a perda e a ausência de futuro são parte constante da experiência cotidiana.
Ao organizar esta retrospectiva de 2020, propomos elaborar perdas seguindo de perto o argumento da filósofa Judith Butler, para quem nem sempre sabemos o que está perdido no objeto perdido, porque há um elemento enigmático de toda perda. Com Butler, penso que toda perda nos apresenta outro enigma: o que resta vivo, em nós, daqueles que perdemos? E, mais, como fazer a separação entre o que guardar e o que deixar ir? Os artigos a seguir se organizam em torno desta ideia ambivalente: lamentamos as perdas olhando para as possibilidades que se revelaram, provavelmente porque já existiam em potencial, mirando nas ameaças que se agudizaram.
Na emergência explícita do fascismo, a luta nas ruas, os movimentos antifascistas, como descrito nos artigos de Acácio Augusto e de Camila Jourdan. Na morte cruel de pessoas negras, a força do movimento Black Lives Matter, como apresenta Flavia Rios com base em pesquisa realizada nos Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd; na gestão da pandemia pela via necropolítica, a face mais violenta de um Estado securitário, como alerta Edson Teles, seguido de Fernanda Martins em artigo com as necessárias críticas à gestão da população carcerária durante a pandemia, atualização de nossas já conhecidas práticas de poder colonial. A história monumental dessa violência tem sido contada por estátuas construídas em homenagem a colonizadores e desconstruídas num longo processo de revisão da memória oficial, como relata Juliana de Moraes Monteiro. Como a matéria deste dossiê é nossa relação com a memória, duas psicanalistas, Suely Aires e Natália Mota, escrevem sobre como, nos sonhos, os sujeitos foram confrontados com o grande trauma coletivo da perda e o esfacelamento da dimensão pública, aí incluídos os rituais fúnebres. Por fim, Sonia Corrêa marca a cena política de 2020 com a história da mobilização feminista a favor de uma criança de 10 anos que, vítima de estupros sucessivos de um tio, obteve o direito à interrupção voluntária da gravidez, apesar de toda a violência conservadora que se abateu sobre ela.
Foi um ano de guerrilha, aqui entendida como estratégia cotidiana de driblar o fim do mundo. Por isso, o dossiê se encerra com uma lufada de ar fresco soprada por Juliana Aggio, com a narrativa de como nós, mulheres filósofas, tomamos a cena pública num campo acadêmico marcado por exclusões de gênero, raça e classe. Fim e recomeços.
CARLA RODRIGUES é professora no Departamento de Filosofia da UFRJ, coordenadora do laboratório Filosofias do Tempo do Agora e pesquisadora da Faperj.