Cem anos depois, um novo fascismo

Cem anos depois, um novo fascismo
(Colagem: Laura Teixeira)

 

Uma premissa importante para compreender por que se fala em fascismo em pleno século 21 é admitir que não se trata apenas de um regime político localizável em uma parte superada da história. Para além disso, é necessário retirar as experiências históricas do nazismo alemão e do fascismo italiano do campo da excepcionalidade. Primeiro reconhecendo que houve, em diversas partes do planeta, governos ditatoriais análogos a essas duas experiências mais recordadas, seja antes da Segunda Guerra Mundial, como o salazarismo português e o varguismo brasileiro, seja depois, como no franquismo espanhol, a ditadura dos coronéis na Grécia ou mesmo as ditaduras na América do Sul e no continente africano, instadas pela disputa internacional da Guerra Fria. Isso pode ser feito considerando os que, com razão, cobram certo rigor teórico e conceitual, pois há sempre o risco de cair na armadilha de ver fascismo em tudo e, assim, não saber qual é o alvo a ser combatido. Então, o que é o fascismo que ressurgiu na segunda década do século 21?

Podemos começar a pensar a partir da observação de Michel Foucault (1926-84) a respeito do fascismo e do stalinismo, num curto texto dos anos 1980 intitulado “O sujeito e o poder”. Nesse texto ele assinala que as duas formas de poder brutal no século 20 “utilizam e expandem mecanismos já presentes na maioria das sociedades [ocidentais]. Mais do que isso: apesar de sua própria loucura interna, utilizaram amplamente as ideias e os artifícios de nossa racionalidade política”. Por isso, é sempre bom lembrar que o fascismo está aí, em nossas sociedades democráticas e capitalistas e que, novamente lembrando Foucault, ele se aloja nas dobras do corpo que “fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas”.

No entanto, o ano de 2020 recolocou a palavra fascismo nas ruas, nos jornais e nas revistas por motivos que vão um pouco além do fato de o fascismo ser uma virtualidade latente de qualquer regime estatal e de estar entranhado nas dobras da subjetividade moderna. E isso com a coincidência de ser na mesma década, mas do século seguinte, que os movimentos fascistas ganharam volume no velho continente europeu. O mundo, há cerca de dez anos, assiste ao avanço inédito de partidos, movimentos e governantes que exibem modos, símbolos e discursos fascistas e até mesmo abertamente neonazistas. Esses movimentos, líderes de governo e partidos políticos legalizados são nomeados como alt-right (do inglês alternative right), uma alternativa de direita à crise de representação que os governos vivem em todo o planeta desde a crise financeira de 2008. Para citar alguns exemplos, há a Frente Nacional Francesa, a Aurora Dourada grega, a Pegida alemã, o Partido da Liberdade austríaco, o Partido Lei e Justiça (PiS) polonês, a Liga Norte italiana e governantes ubuescos como Viktor Orbán na Hungria, Volodymyr Zelensky na Ucrânia, Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, Rodrigo Duterte nas Filipinas e Jair Bolsonaro no Brasil. Ainda que tenham trajetórias políticas, estéticas e modos de ação diversos, esses líderes, partidos e movimentos apresentam um conjunto de características comuns que os aproximam entre si e aproximam todos de um modo fascista de ação política. O que nos leva a outro ponto importante para pensar o fascismo em 2020: apesar da derrota militar dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial, o fascismo, como forma política de ação coletiva, não foi derrotado com a morte de Adolf Hitler e Benito Mussolini e a derrota militar de seus exércitos.

 

Posto isso, para compreender
melhor o que estamos chamando
de fascismo no século 21, temos
que olhar para as pessoas e os
movimentos que resistem a ele
há algum tempo nas ruas: os
antifa e as fantifas (feministas
antifascistas) contemporâneas.

 

 

Qual a definição da antifa contemporânea em relação ao que ela combate sob o nome de fascismo? Segundo Mark Bray, autor de Antifa: o manual antifascista, os antifas não se opõem ao fascismo por ele ser uma política antiliberal e/ou antidemocrática e de cerceamento da liberdade de expressão, mas porque os grupos fascistas de hoje, alocados entre as várias formas da alt-right, promovem: a) o racismo e a supremacia branca; b) a misoginia, o sexismo e condutas LGBTQfóbicas; c) o autoritarismo, a recuperação idealizada de uma ordem passada e discursos genocidas. Esses três elementos, largamente difundidos pela alt-right, são o que caracteriza os fascistas de 2020. No Brasil, grupos anarco-punks, como o Anarquistas Contra o Racismo (ACR), criado em 1993, sempre promoveram campanhas regulares de alerta contra essas práticas – especialmente contra grupos de skinheads, carecas e white powers. Entre os anarco-punks, destacam-se as Jornadas Antifascistas, que acontecem todo mês de fevereiro, desde 2000. 

Por sua vez, na Europa e nas Américas, grupos anarquistas e antiautoritários se esforçam há mais de 40 anos em alertar que a política (neo)fascista e (neo)nazista não foi enterrada com a derrota das potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial, sendo, portanto, preciso combatê-la. Esses grupos, oriundos da contracultura anarco-punk e do autonomismo europeu, balizaram, décadas antes, o que é uma luta antifascista pós-Segunda Guerra – o que inclui o anticapitalismo. Como reforça Bray, novamente, o antifascismo contemporâneo é “um método político, um locus de autoidentificação individual e de grupo, de um movimento transnacional que adaptou correntes socialistas, anarquistas e comunistas preexistentes a uma súbita necessidade de reagir à ameaça fascista”, que passou a se difundir de forma ampla e, muitas vezes, por meio de escaramuças. Essa postura e essa forma de ver o fascismo fazem da antifa contemporânea uma “política nada liberal” e relacionada aos movimentos de revolta e/ou revolucionários compostos de associações por afinidade ou organizações locais, com atuação regular e numericamente reduzidos.

 

Partindo dessa oposição
inequívoca às formas atuais
do fascismo, o embate nas
ruas e no campo discursivo
realizado pelos antifa, assim
como o crescente interesse
por essa forma de atuação,
se constituem como chave
analítica potente para
compreender o fascismo
no século 21.

 

Mas não seria honesto, nem preciso, analisar as manifestações misóginas, racistas e autoritárias apenas como um retorno do fascismo das décadas de 1920 e 1930. Como a história não se repete, é preciso captar as diferenças e as metamorfoses provocadas pelas lutas para produzir um diagnóstico do presente, pois disso depende a capacidade de lutar contra o fascismo hoje. E, ao contrário do que se sustentou ao longo do ano trágico e desastroso que foi 2020, não será nas urnas e/ou na ocupação de uma etérea “esfera pública” que esse retorno do recalcado fascismo será derrotado cem anos depois. A derrota eleitoral de Donald Trump nos Estados Unidos é um exemplo disso. De um lado, o simples fato de seu grupo de supremacistas brancos ter perdido a eleição não elimina a crescente presença da alt-right nas ruas e, ao mesmo tempo, a derrota só ocorreu porque o país viveu manifestações multitudinárias contra o racismo desde maio de 2020. Lembrando uma máxima do antifascismo histórico pronunciada pelo anarquista Buenaventura Durruti: “Fascismo não se discute, se destrói”. 

De fato, se buscarmos todas as características do fascismo histórico, dificilmente elas corresponderiam literalmente aos modos e às formas de ação política da alt-right hoje. Mas, se nos voltarmos para o fato de que o fascismo histórico, apesar da derrota militar em 1945, seguiu permeando a política das democracias liberais no pós-guerra, podemos chegar a conclusões outras, como as colocadas pelos movimentos antifa. Por isso, é sempre necessário que olhemos para os embates do presente em sua expressão mais radical, sem cair nas armadilhas do desejo de moderações que a política liberal democrática sempre tenta impor. 

Desde a última década do século 20, quando a democracia liberal anunciou seu triunfo planetário e o capitalismo se autoproclamou uma realidade incontornável, expressa na sigla TINA (There is no alternative, “Não há alternativa”), um campo em especial se tornou terreno fértil para a ampliação de políticas e condutas fascistas no século 21: o campo da segurança. Foi a partir daquela década que houve um alargamento e metamorfoses na distribuição da violência no planeta, com as chamadas “novas guerras” e com a ampliação das políticas de segurança pública. Assim, para além das características do fascismo contemporâneo que listamos até aqui, as políticas de segurança são a arena na qual se dá a luta entre fascismo e antifascismo no século 21.

 

A centralidade do tema da
segurança nas democracias
no pós-Segunda Guerra
Mundial é evidente, a ponto
de produzir no campo das
relações internacionais a
passagem dos estudos
estratégicos de guerra para
o campo da segurança
internacional.

 

 

Com o fim da Guerra Fria, vemos a expansão das políticas de segurança, tanto no campo da segurança pública – com programas urbanos como o tolerância zero estadunidense, exportado para o mundo com o superencarceramento, inclusive em governos de esquerda –, como no campo da segurança internacional, pela ascensão das políticas de combate ao terrorismo transterritorial, especialmente após o 11 de setembro de 2001. As políticas de guerra às drogas marcadas pela declaração de guerra de Richard Nixon, no fatídico 1973 (ano do golpe de Estado chileno), expressam de maneira mais evidente a junção entre segurança pública e internacional. Além dessa tendência planetária, é amplamente conhecido o fato de que a alt-right se viabilizou eleitoralmente com um forte discurso sobre o setor de segurança e pela mobilização do medo da diferença: seja no norte, enfatizando a necessidade de combate ao terrorismo, a expansão da política antimigratória (desde o Tratado de Schengen), a xenofobia e o racismo; seja no sul, impulsionando a retórica do combate à criminalidade, a degeneração moral da juventude, a necessidade de controle policial e militarização de regiões pobres das cidades etc., além de sua ligação direta com agentes de segurança no campo policial e militar, com generais, capitães, cabos e soldados se tornando celebridades políticas. Nesse sentido, a alt-right tinha um terreno preparado para sua expansão, especialmente após a crise global de 2008. A alt-right, ao contrário do que muitos estudiosos do assunto afirmam, não é antipolítica, mas a expressão da política democrática contemporânea levada ao seu paroxismo.

Desde a emergência das revoltas gregas em dezembro de 2008 até os recentes atos antirracistas com presença de antifas nos EUA, um elemento disparador dos motins é comum: a ação da polícia e/ou de agentes de segurança pública ou privada e com atuação legal e ilegal. Na Grécia, por exemplo, ainda que os protestos estivessem direcionados contra as políticas de austeridade do governo, a revolta antipolítica tomou conta das ruas após um policial, Epaminondas Korkoneas, disparar contra Aléxandros Andréas Grigorópulos, um jovem anarquista de ascendência armênia, de 15 anos, levando-o à morte. Mesmo nos EUA, onde as revoltas contra a polícia ganharam destaque internacional desde 2013 com a emergência do movimento Black Lives Matter, esses riots antipolícia já ocorriam desde ao menos os anos 1990, os chamados “distúrbios de Los Angeles”, com protestos contra a perseguição racista da polícia de lá. 

Pensando no Brasil, não é demais lembrar que as jornadas de junho de 2013, ao menos em São Paulo, foram atos que se iniciaram com os protestos regulares do Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento da passagem e pela tarifa zero, porém o que marcou o espalhamento da revolta e da indignação foi a reação à violência da Polícia Militar no ato de 13 de junho de 2013, quando manifestantes e integrantes da imprensa foram gravemente feridos por policiais da Tropa de Choque. Também não é fortuito que a proposta de abolição da polícia passasse a circular entre os protestos nas ruas ao redor do planeta, com cartazes que levam a sigla ACAB (All Cops Are Bastards, “Todos os Policiais São Bastardos”). O que a recuperação desses fatos esparsos mostra é que, para além do nome fascismo, é por meio das políticas de segurança que se promove o extermínio nas democracias atuais, e não é coincidência que seus agentes se tornem alvos de protestos antirracistas.

 

Por isso, este texto sustenta
que o fascismo do século 21
deve ser observado em torno
das políticas de segurança.

 

 

Mais do que isso, o fascismo se realiza, em sua metamorfose contemporânea, na centralidade que as democracias concederam às variadas formas de securitização, judicialização com regulação de direitos de minoria e penalizações a céu aberto, no interior da governamentalidade planetária, que Edson Passetti nomeou de ecopolítica: não mais o fazer viver e deixar morrer da biopolítica, que levou ao nazismo, ao fascismo e ao stalinismo no século 20, mas a “segurança do vivo no planeta”. E como a história não se repete, não é exatamente preciso chamarmos essas formas democráticas de extermínio de fascismo. No LASInTec, nosso laboratório no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), chamamos de “democracias securitárias”. Entre outros motivos, preferimos nomear assim porque as expressões da extrema-direita hoje não são antidemocráticas. Só as vê como antidemocráticas quem se orienta por uma ideia do que deveria ser a democracia. Mas quando observamos a ascensão eleitoral desses grupos em países democráticos, não seria um absurdo questionar se essa não seria a forma contemporânea da democracia realmente existente, e se, em vez de defendê-la, não seria o caso de pensar em ultrapassá-la. Pois o fascismo, para além das características descritas pelos grupos antifa, está inscrito na racionalidade da política moderna e expresso em governos formalmente democráticos. Em poucas palavras: o fascismo do século 21 aprendeu a ser democrático. 

Por isso a oposição a essa forma de fascismo hoje não pode ser a fé nas urnas, mas sim a revolta das pessoas comuns. Ela aparece, por exemplo, entre anônimos praticantes da tática black bloc e os grupos antifa, quase sempre contra as mortes perpetradas por agentes de segurança. Esse é o fogo da antipolítica contra as políticas de segurança, fogo que foi reanimado nesse ano tão trágico de 2020. E como disse o pré-socrático Heráclito: “O fogo realiza e tudo discerne”. Fogo!

ACÁCIO AUGUSTO é professor no Departamento de Relações Internacionais da Unifesp e pesquisador associado ao Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP.  


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