A guerrilha das filósofas

A guerrilha das filósofas
(Colagem: Laura Teixeira)

 

Talvez não tenhamos, ainda, a mesma articulação e atuação que as Guerrilla Girls tiveram em 1985, mas estamos nos encaminhando para isso. Como reação a uma exposição realizada em 1984 no Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York – cujo título era Panorama Internacional de Pinturas e Esculturas Recentes e que  incluía apenas 13 mulheres entre 165 artistas – , surgiu um grupo de ativistas feministas para sacolejar o mundo das artes em sua naturalização e perpetuação da desigualdade de gênero. Como reação a um debate realizado em setembro de 2020 sobre A pós-graduação de filosofia no Brasil, protagonizada apenas por homens (e uma mulher relegada ao papel de mediadora), filósofas brasileiras se articularam em um grupo virtual denominado Guerrilla Girls e performatizaram uma intervenção virtual reivindicando o óbvio ululante: a presença de mulheres no espaço público. Um ato performativo, um sopro de ar em meio a anos de opressão na filosofia acadêmica brasileira: eis as Guerrilla Filósofas no apogeu da primavera das filósofas. 

Fomos além dessa reação performativa, organizando um ciclo de debates sobre a pós-graduação de Filosofia no Brasil, com quatro mesas compostas majoritariamente de mulheres. Há uma história por trás desses atos que nos fortalece e nos encoraja a encampar nossa guerrilla.     

Com um crescente número de atividades e intervenções, iniciou-se, em 2016, nossa primavera. Um texto divisor de águas que marcou o debate público naquele ano foi o “Mulheres na pós-graduação em Filosofia no Brasil”, de Carolina Araújo (UFRJ), que mostrou que as mulheres têm 2,5 menos chance de chegar ao topo da carreira. E também foi fundamental a criação , em 2016, do grupo de trabalho Filosofia e Gênero da -Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), sob coordenação de Susana de Castro (UFRJ). Surgiu também no mesmo ano o projeto de extensão Quantas Filósofas?, da UFRJ, cujo objetivo é produzir dados sobre Filosofia e Mulheres no Brasil e redigir e divulgar verbetes sobre filósofas. Analisando o período de 2016 a 2019, Carolina Araújo demonstra no texto “Primavera das filósofas” que houve um salto expressivo no número de eventos sobre mulheres e Filosofia em 2018 e 2019: só em 2019 foram realizados 25 eventos desse tipo, mais do que nos três anos anteriores somados.  

Em 2020, houve uma explosão de eventos na Filosofia organizados por mulheres e sobre mulheres filósofas: eis o apogeu da primavera das filósofas. Segundo dados recolhidos pela Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, foram cerca de 108 eventos virtuais (lives, podcasts, encontros), 28 cursos, 42 publicações e 9 entrevistas sobre a temática mulheres e filosofia. Cabe, então, destacar algumas iniciativas: 

  • A Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, que abriga 67 projetos, diversos eventos e iniciativas, e que pode ser compreendida como uma autopoietica de ações coletivas em território e comunidade de segunda ordem para lutar contra o preconceito acadêmico. 
  • A Rede de Mulheres Filósofas da América Latina (Reddem), cujo objetivo é fortalecer o intercâmbio e a solidariedade entre suas integrantes.
  • O grupo de trabalho Mulheres na História da Filosofia da Anpof, que procura resgatar obras de filósofas historicamente silenciadas e negligenciadas. 
  • O Projeto Solidariedade, no Laboratório Filosofias do Tempo do Agora, em parceria com o coletivo Dissonâncias Coletivas, que oferece cursos cuja metade da verba angariada é destinada ao projeto Maré de Sabores, no qual mulheres da Favela da Maré cozinham todos os dias 300 refeições para a população local desassistida.
  • O projeto Uma Filósofa por Mês, cujo objetivo é fazer conhecer a biografia e a bibliografia de pensadoras, da antiguidade à contemporaneidade. 
  • A escola As Pensadoras, que iniciou seus cursos de formação feminista destinando parte da verba para as mulheres indígenas e chegou a receber mais de 7 mil alunas em 2020.
  • O projeto Mulheres de Hoje e de Ontem, podcast na rádio da UFRJ elaborado em conjunto pelos grupos de pesquisa Reflexão Moral Interdisciplinar e Narratividade (Germina-UFSC) e o grupo Decolonial Carolina de Jesus, do Laboratório Antígona (IFCS/UFRJ). O objetivo é fazer conhecer as filósofas de modo acessível e atraente.
  • O projeto Mulheres que Leem Mulheres; o Filósofas na Rede; o blog Mulheres na Filosofia, da Unicamp; o Prêmio Filósofas: melhores dissertação e tese em Filosofia produzidas por uma mulher. 

A lista não se pretendeu exaustiva, mas dá destaque a uma certa representatividade de projetos e ações inclusivas focando questões de gênero, raça, sexualidade e classe, que têm dado gás à consciência da necessidade de diminuir as desigualdades. 

Um marco importante dessa guerrilla foi a publicação do dossiê Filósofas. Talvez esse dossiê tenha sido uma reação à famosa coleção de livros Os Pensadores, que não contém nenhuma pensadora em seus 52 volumes de 25 séculos de Filosofia. Mas talvez seja mais do que isso. Talvez seja a expressão de que nós, filósofas brasileiras, estamos ganhando cada vez mais consciência de que a produção das mulheres na Filosofia é extremamente profunda e transformadora e de que queremos uma revisão feminista completa da história da filosofia. Uma história que, além de incluir mulheres filósofas, se abra para novos objetos, questões e temas e para novas formas de argumentar, imaginar e produzir conhecimento. 

Tendo em vista a magnitude em beleza e profundidade filosófica e o impacto político-acadêmico da publicação, com a presença de filósofas de norte a sul do país e com textos sobre diversas filósofas de enorme qualidade e quantidade (por volta de 500 páginas), foi feito o Colóquio Filósofas em novembro de 2020. Foi numa das mesas desse encontro que a filósofa Yara Frateschi nos definiu: “Há poucos anos esse dossiê não seria possível. Tornou-se possível porque as mulheres da área de Filosofia se organizaram localmente e se uniram nacionalmente para combater a desigualdade de gênero absurda que faz com que 73% da comunidade filosófica sejam de homens, com evasão enorme de mulheres ao longo da carreira. Além de estar lindo, esse dossiê é também uma ação política. Estamos disputando um espaço de poder e queremos entrar nele com outras práticas e valores; queremos recontar a história da Filosofia trazendo para o centro quem esteve às margens; queremos que a Filosofia deixe de ser um território quase que exclusivamente masculino e branco e, sobretudo, combater a evasão das nossas alunas. Espero que quando os obstáculos para a sua permanência parecerem insuperáveis, elas peguem esse dossiê nas mãos e digam: eu posso ser uma filósofa”. 

 

Com as obras filosóficas nas
mãos e a ousadia de dizer o
que pensam, as filósofas
marcam um desvio na curva
da história filosófica feita
por homens e para homens.

 

 

Diante desse acontecimento, ecoa em nós uma forte indignação e uma questão fulcral. A artista plástica Cecília Cavalieri pergunta algo que deixa todas nós indignadas, uma vez que, diante de uma injustiça social, só se pode sentir indignação e revolta. Pois bem, a pergunta é a seguinte: “Quem cozinhava, quem limpava, quem cuidava das crianças para que esses pensadores de 25 séculos produzissem o que eles produziram?”. 

Procurar fazer uma revisão feminista da história da Filosofia não significa apenas colocar em xeque as verdades produzidas por essas Filosofias e questionar o tipo de pensamento que se está operando, mas, sobretudo, tornar patente suas estratégias políticas de naturalizar o que não deveria ser naturalizado. Uma perspectiva feminista da história da Filosofia significa, como bem disse a filósofa Izilda Johanson (Unifesp), “pôr em xeque certas construções hierárquicas e generificações do pensamento”, e assim abrir espaço para um discurso libertário e emancipador que seja simultaneamente crítico e criador. 

Rever, portanto, como já nos sinalizou Judith Butler em Problemas de gênero, o binarismo metafísico que estrutura a maior parte das obras canonizadas como filosóficas por estruturar o modo de pensar ocidental: de um lado o racional, o ativo, o civilizado, a alma, e de outro o irracional, a emoção, o passivo, o selvagem, o corpo, o sexo. O homem estaria do lado da razão e teria um corpo com sexo; à mulher lhe faltaria a mesma capacidade racional, ou, ainda que igualmente capaz, não alcançaria a mesma desenvoltura cognitiva. A mulher estaria do lado das emoções e seria não um corpo com sexo, mas o sexo. Essa estrutura binária hierárquica metafísica é em si mesma opressiva e precisa ser colocada em xeque para que não continue sendo a base da produção epistemológica e da prática da Filosofia. Se os conceitos são lugares de disputa e o poder é intrínseco ao saber, então nós podemos ousar construir outros critérios, metodologias, exegese, revisão do cânone. Enfim, um modo outro de fazer Filosofia, a partir também de categorias não ocidentalizadas e, certamente, sobre uma base de princípios e argumentos não produtores de hierarquias de humanização e desumanização, a justificar e naturalizar opressões. Dentre muitas opressões, cito apenas as duas que considero mais nefastas: a opressão intelectual do dogmatismo e a cultura da desumanização. Da primeira, seguem-se a prisão do pensamento e a obediência servil. Da segunda, seguem-se violência, assassinato, tortura, estupro, escravidão e genocídio. Ou a Filosofia serve para enfrentar as opressões ou não tem utilidade para nós. Ou a Filosofia é intrinsecamente libertária ou ela reproduz, por omissão ou declaração, as opressões.

As obras das filósofas, embora ocultadas como estratégia de garantir a manutenção da hegemonia e dos privilégios dos homens na produção de conhecimento, solapando a crença em nossa capacidade de ousar intelectual e socialmente para romper os padrões de opressão, vêm sendo resgatadas e trazidas a público numa tentativa de remediar o irremediável: a injustiça que as mulheres filósofas sofreram com seu constante apagamento. Não bastaria denunciar esse fato tão evidente e conhecido; é preciso ouvir a voz dessas filósofas e Filosofias. Eis o propósito libertador de nossa guerrilla.

Se guerrilla se caracteriza como uma guerra de pequeno porte, irregular, dispersa nas ações, movimento de resistência ao longo da história, as Guerrilla Filósofas podem ser caracterizadas por suas lutas cotidianas e menores contra qualquer tipo de autoritarismo, dentro e fora da academia, que nos oprima, apague e exclua. 

Percorrendo caminhos paralelos, os efeitos de nossa guerrilha já são notórios e notáveis: mais eventos feitos por mulheres e sobre filósofas, mais publicações de e sobre filósofas, mais filósofas nas referências bibliográficas das disciplinas, maior inserção das mulheres na pesquisa acadêmica, no ensino e na extensão dos temas de gênero, mais grupos e redes de articulação entre filósofas, mais filósofas ocupando cargos de poder. 

Diante da enorme ausência feminina na história da Filosofia, é inevitável que surja na mente das alunas a seguinte pergunta: será que existem mulheres filósofas? O que conduz imediatamente a outra pergunta de fundo: será que a mulher é capaz de filosofar? Acreditar que nós, mulheres, seríamos capazes de fazer Filosofia é muito mais difícil diante de uma história da Filosofia que omite filósofas. É muito mais difícil em um ambiente acadêmico que nos diminui, oprime e até assedia. É muito mais difícil em uma sociedade machista, patriarcal, que desqualifica a mulher e desvaloriza a Filosofia. Pois bem, nossa coletividade feminista acadêmica é um movimento de resistência que visa a superar essas dificuldades. Juntas e solidárias, lado a lado, contra a violência institucional sexista e racista. Para além da divulgação de nossos trabalhos, para além das possibilidades de nos conectarmos, para além da conquista de visibilidade e do reconhecimento acadêmico e social da Filosofia feita por mulheres, está a compreensão de que o silenciamento e a opressão são estruturais, e não um evento particular de uma ou outra filósofa. Essa coletividade vem construindo o que se poderia chamar de consciência de classe ou de grupo: a consciência de que nós, mulheres filósofas, encontramos em nós mesmas força e coragem para nos expormos mais e produzirmos Filosofia com mais audácia e liberdade.  

Se as Guerrilla Girls disseram em alto e bom som “ao menos os museus não discriminarão mais mulheres e artistas marginais!”, as Guerrilla Filósofas, em breve, poderão dizer sem receio: ao menos a academia não poderá mais apagar e excluir as mulheres filósofas.

JULIANA AGGIO é professora do Departamento de Filosofia da UFBA, coordenadora do grupo de trabalho Filosofia e Gênero da Anpof e administradora da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas.


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