Dossiê | O afeto Tarkovski

Dossiê | O afeto Tarkovski
O diretor russo Andrei Tarkovski (Reprodução)

 

Em seus escritos, Andrei Tarkovski descrevia a si mesmo como um artista cujo meio de expressão era o tempo; apesar disso, muitos (se não todos os) estudiosos de seus filmes tentam diligentemente extraí-lo do seu momento histórico, e das condições em que viveu. Tarkovski aparece mais como um guru espiritual do que como um diretor; mais como um Gandhi do que como um Eisenstein ou Spielberg. A punição, por ocupar um lugar acima dos filmes medianos, e do discurso cinematográfico, é que Tarkovski acaba sendo excluído da história do cinema, pelo menos nos EUA.

Em meu trabalho com os filmes de Tarkovski, sempre achei que compensava bem mais lidar com os detratores de Tarkovski do que com seus discípulos, a começar com um colega que uma vez ridicularizou os filmes de Tarkovski com a expressão “transcendência fácil”. Mesmo quando acusam a arte de Tarkovski de ser entediante, ou rejeitam sua emocionalidade como sentimental, pelo menos eles estão vendo seus filmes, ao invés de apenas venerar o mito do homem. Em contraste, tentei manter uma abordagem descritiva, enraizada na análise da prática criativa de Tarkovski, mais do que em uma interpretação retrospectiva. Por isso, em meu livro Andrei Tarkovski: elements of cinema, começo com um capítulo sobre Tarkovski como parte do sistema soviético de cinema – um sistema estatal, conservador, e bastante ideologizado, contra o qual ele lutou, mas do qual ele dependia bastante. Pode parecer uma contradição considerar Tarkovski um artista soviético, mas não apenas isso é uma questão de fato (Tarkovski nasceu na União Soviética em 1932 e só a deixou em 1982, quatro anos antes de sua morte), é também um pressuposto fundamental para entender as origens e as ressonâncias de seu estilo.

O estilo de Tarkovski está enraizado em convenções soviéticas, desde a primazia do roteiro (um tratamento detalhado do roteiro precisava ser aprovado antes da fase de produção), até a forte relação entre a equipe de produção e os diretores, que pressupunha a colaboração intensa entre diretor, roteirista, diretor de fotografia, cenografia, compositor e até mesmo atores. Essa estrutura havia sido estabelecida pela indústria soviética de cinema nos anos 1920, e formalizada por Sergei Eisenstein no currículo do Instituto Estatal de Cinema, onde Tarkovski estudou, assim como fizeram os grandes diretores das décadas anteriores, e também outros artistas do cinema de sua própria geração.

Tarkovski manteve contato com o cinema mundial o tanto quanto era possível para um diretor vivendo na União Soviética; mas o seu cânone de diretores estrangeiros – Jean Vigo, Luis Buñuel, Robert Bresson, Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni e Federico Fellini – seguia de perto os cânones soviéticos. Embora tenha elogiado uma vez o Sleep (1963) de Andy Warhol, por seu “inesperado e tocante efeito cinemático”, ele demostrou, por outro lado, pouco gostar do cinema experimental, e aparentemente preferia até mesmo o cinema hollywoodiano. Quando estava preparando um filme, era comum que um diretor soviético mostrasse à sua equipe um conjunto de filmes de referência, sobretudo por causa de sua relevância para o projeto em curso; para O espelho (1975), o mais ambicioso projeto de Tarkovski (até mesmo de “vanguarda”), ele pediu os seguintes oito filmes:

Moscou contra 007 [Terence Young, 1963]
007 contra Goldfinger [Guy Hamilton, 1964]
Três homens em conflito [Sergio Leone, 1966]
Por um punhado de dólares [Sergio Leone, 1965]
Era uma vez no Oeste [Sergio Leone, 1968]
Roma [Frederico Fellini, 1972]
[Frederico Fellini, 1963]
Maddalena. Zero em comportamento [Vittorio de Sica, 1940]

Provavelmente os filmes haviam sido selecionados mais para diversão do que por motivos profissionais, mas a seleção ainda sugere um gosto muito mais católico do que se supõe normalmente. Mais ainda, essa lista dá uma ideia do lugar que Tarkovski imaginava para si mesmo dentro de uma linha evolutiva do meio cinematográfico e, mais importante ainda, confirma que ele via sua obra no contexto dessa evolução, mais do que alguém que estava dialogando com Tolstoi ou Thomas Mann.

Também se pode dizer que há poucos diretores cujo legado é tão importante para o cinema contemporâneo. Além dos exemplos óbvios, como os filmes de Andrei Sviagintsev e Béla Tarr, ou o remake de Solaris por Steve Soderbergh (2003), tributos a Tarkovski pululam em todo tipo de lugar. Um vídeo que circula na internet mostra Alejandro González Iñárritu citando deliberadamente planos dos mais conhecidos filmes de Tarkovski em O regresso (2015). Uma homenagem mais complexa ocorre no filme Uzak (Distante, 2002) de Nuri Birge Ceylan, no qual os protagonistas – dois irmãos – assistem, em casa, ao filme Stalker (1979), confirmando a emulação consciente de Ceylan do estilo pensativo e de longas tomadas de Tarkovski. Mas logo que um dos irmãos sai do quarto, o outro substitui Stalker por um filme pornográfico, um toque irônico que sinaliza para a ambivalência de Ceylan quanto à influência de Tarkovski: o cinema pode aspirar a ser muito mais do que um sabonete visual, mas também deve apelar para o olho e os interesses dos espectadores.

Em resumo, defendo que os filmes de Tarkovski são notáveis não apenas por sua profundidade intelectual, mas também por causa de suas texturas materiais e emocionais, isto é, de suas ressonâncias afetivas. O problema é a fragilidade desse afeto, que pode ser obscurecido por uma projeção indiferente ou por um preconceito do espectador; a oferta de Tarkovski requer que o espectador esteja preparado para recebê-la. Mas talvez o mesmo valha para qualquer filme sério.

Depois de um longo intervalo de tempo, retornei recentemente a Tarkovski, e comecei um artigo sobre O espelho (1975), inspirado por uma projeção belíssima em 35mm durante meu curso sobre cinema russo, e também depois de ficar melhor informado sobre a história do cinema soviético, no qual (e não contra o qual) Tarkovski trabalhou. O espelho é um filme autobiográfico que reencena as próprias memórias do diretor, pontuadas com cenas ficcionais, trechos de documentários e poemas de Arsenii Tarkovski, seu pai, que os lê na trilha sonora do filme. Sua composição sintética não apenas exemplifica as práticas de mistura de gêneros do cinema soviético; ele também põe em foco a história do documentário soviético, especialmente tal como havia sido desenvolvido por Dziga Vertov nos anos 1930. O espelho não é somente a autobiografia de seu autor, eu pretendo mostrar, mas também a autobiografia do seu meio, a saber, o documentário poético.

Frame do filme 'Solarys' (1972), de Andrei Tarkovski (Reprodução)
Frame do filme ‘Solarys’ (1972), de Andrei Tarkovski (Reprodução)

Centro-me na segunda sequência de cenas de documentário, que mais tarde Tarkovski descreveu como sendo “o verdadeiro centro, a essência mesma – o nervo e o coração do nosso filme, que começa como uma mera recordação lírica”. Essas cenas mostram as tropas soviéticas atravessando o Lago Sivash, uma região pantanosa da Crimeia, no começo do avanço contra as tropas de ocupação alemãs em 1943. Tarkovski editou essas cenas com muito cuidado, entrelaçando-as a um episódio ostensivamente autobiográfico, que também ocorria durante a Segunda Guerra, num campo de tiro às margens do rio Volga. O episódio é ressaltado pelos efeitos sonoros minimalistas de Eduard Artem’ev. No meio da sequência, Arsenii Tarkovski começa a recitar seu poema, “Vida, vida”, de 1965, um dos cinco poemas do pai do diretor presentes na trilha do filme.

Em suas declarações sobre o filme, e também em incontáveis análises feitas por críticos e pesquisadores, essas cenas são vistas como uma garantia da sua autenticidade – autobiográfica, histórica, espiritual e até metafísica. Tarkovski conta como descobriu a obra num arquivo entre “muitos mil metros de filme”: “Nunca vi nada de igual; normalmente o que se encontra são cenas pequenas, fragmentárias do que se concebe literalmente como ‘vida’ do período de guerra, ou trechos de ‘encenações’ em que se sente demasiado planejamento ou pouca verdade genuína. E de repente eu encontrei um caso extraordinário de documentário jornalístico: um episódio, um evento inteiro e integral, extenso no tempo e filmado (de modo não usual) em um único lugar e relatando um dos mais dramáticos eventos da ofensiva de 1943. […] Não conseguia acreditar que aquela quantidade enorme de filme tivesse sido gasta para uma observação extensa de uma única locação”.

A filmagem é tão pungente que Tarkovski fica tentado a imaginar o cinegrafista anônimo como um gênio desconhecido, e até mesmo um mártir: “Algum tempo depois, descobri que o cinegrafista que filmou aquele material morreu no mesmo dia em que havia captado de maneira tão arguta e com força surpreendente a essência dos eventos que ocorriam à sua volta”. Tipicamente, em seu texto, Tarkovski atribui à filmagem uma intimação à eternidade, a qual se “consuma” com o poema de Arsenii Tarkovski.

Não é difícil achar furos na descrição que Tarkovski faz dessa sequência. Por um lado, o cinegrafista que filmou a sequência da passagem do Sivash não apenas tinha um nome – Andrei Ivanovich Solugubov – mas também continuou a trabalhar com cinema depois da guerra, antes de morrer em 1979 (isto é, depois que O espelho foi lançado). A adição de sons realistas e trilha musical pode ser vista como diluição da filmagem em encenação. Além disso, a monumentalização, desejada por Tarkovski, da guerra, e do papel do cinema nela, é de fato “consumada” pelo poema de seu pai, que pertence à tradição russa das adaptações de Horácio da antiga ode “Exegi monumentum” (“Erigi um monumento”).

Apesar de saber disso tudo, e de entender bem toda a estratégia retórica usada por Tarkovski, toda vez que vejo essa sequência (inclusive em aulas e palestras), ela ainda me faz chorar. Fico pensando se isso não tem a ver com o modo como Tarkovski sobrepõe autênticos traços da guerra com a voz de seu pai, com uma deliberada trilha artificial, e com uma narrativa semificcional, que resulta num florescimento simultâneo de múltiplas temporalidades. Talvez a palavra seja “imortalidade”, mas talvez seja também um sentido mais geral de melancolia relativamente à passagem do tempo, e a alegria de ver a sua preservação. Essa melancolia e essa alegria continuam disponíveis aos espectadores enquanto eles viverem com os filmes de Tarkovski, qualquer que seja a sua percepção da mudança das certezas metafísicas. Tradução Adalberto Müller

 

> AMBIÊNCIAS DO SAGRADO, Adalberto Müller

> FÉ E PERTENCIMENTO NO CINEMA DE ANDREI TARKOVSKI, Denilson Lopes

> O STALKER, DE TARKOVSKI, Ekaterina Vólkova Américo e Edelcio Américo

> SOLARIS, ANTES E DEPOIS DO TARKOVSKI, Olga Kempinska

> PAI & FILHO: A LITURGIA DA IMAGEM, Joel Pizzini

 

Robert Bird é professor de cinema da Universidade de Chicago


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