Fé e pertencimento no cinema de Andrei Tarkovski

Fé e pertencimento no cinema de Andrei Tarkovski
O diretor russo Andrei Tarkovski (Divulgação)

 

Nada pareceria mais inoportuno do que falar de Tarkovski hoje. O que ele teria ainda a nos dizer? Mais um mestre dos longos e lentos planos que exigem do espectador uma posição de contemplação e respeito como diante de um quadro? Uma visão nostálgica de um mundo pré-moderno? Não sei o que de sua obra restará e qual sua importância na história, se é que terá. Minha questão será outra: em tempos de fundamentalismos de toda ordem, me interessa pensá-lo como cineasta da fé, essa experiência tão criticada, tão instrumentalizada quanto mal-entendida. Fé que estabelece relações conflitivas com o espaço da Igreja.

No Romantismo, a fé pôde sair das igrejas para ser expressa na natureza, alvo de um sentimento panteísta. Mesmo as paisagens pós-industriais, deterioradas, de Stalker (1979) parecem continuar e ampliar essa tradição, mas as igrejas, esses espaços tradicionais e privilegiados para a experiência da fé, que fim levaram? Não se trata de pensar a Igreja sob a sombra de velhos e novos fundamentalismos, nostálgicos de verdades incontestáveis, mas a partir de uma necessidade presente, rediviva. Pensar a Igreja ainda como uma paisagem de fé, de crença, possibilidade de reinvenção, mais do que como instituição, espaço de poder. Em meio ao mundo fragmentado e espetacularizado pelos meios de comunicação de massa, sentir a Igreja como um lugar em que possamos crer, em que pode haver fé foi a questão, mais ética do que religiosa, que me acompanhou. A fé pressupõe entrega, desejo de pertencer, encontrar, dissolver. A fé se constitui em uma posição afirmadora do mundo, até mesmo em uma forma de conhecimento, distante do cinismo e da reserva cética. Essa fé no mundo é traduzida por uma fé na imagem concreta, material, intensa, que se coloca como uma alternativa à vertigem de uma estética do simulacro, marcada pela rapidez, descartabilidade, excesso de referências e metalinguagem.

A necessidade de falar sobre a fé, hoje em dia, me levou, no cinema, a me interessar por Tarkovski, num trajeto muito particular por espaços em que pudesse desaparecer, digo, sem temor nem pudor, em encantamento, em fascínio. Andando por essas imagens, meu templo, procurava uma antítese ao excesso de “eu penso”, “eu sinto”, “eu falo”, “eu critico”, “eu me oponho”.

Há muito tempo desaprendi a rezar, e agora é como se estivesse voltando a me ajoelhar não por necessidade de acreditar em algo desesperadamente, e com certeza, não em Deus. O pedido era mais modesto: que eu nunca mais fosse eu mesmo.

Uma cena se repete: sempre me vejo entrar e me ajoelhar, mesmo sem acreditar, mas crendo. Como um mantra, as palavras se repetem. E eu continuo sempre a entrar, a me ajoelhar diante de ti, diante de vós.

Essa nossa viagem, começamos pela Idade Média, quando não só a Igreja, mas sua própria construção representavam uma possibilidade de fé e crença, mesmo diante das maiores privações (fome, peste, guerra) – possibilidade de compartilhar, de constituir uma comunidade, mesmo de utopia, sob a sombra do religioso, como podemos ver em Andrei Rublev (1966), de Tarkovski, sem se restringir à submissão a dogmas. A “teologia material”, termo de Slavoj Žižek para dialogar com os filmes de Tarkovski, definida por uma “transcendência na imanência” (conforme Luca Governatori), se expressa em espaços em que terra e água se misturam constantemente; converge na penosa e longa construção de uma igreja, e tem seu clímax no momento em que se experimenta o sino para ver ser se ele funciona. O sino é a primeira imagem do filme, e seu teste conclui a trama e a travessia do protagonista. Não se trata de simples submissão a uma tradição, mas do segredo de como construir sinos. Tido como perdido, ele é resgatado pela fé e pelo esforço concreto – de sofrimento e do duro trabalho coletivo – convertido na imaterialidade do som que toca, ressoa e congrega toda a pequena cidade ao redor. Não se trata de nostalgia de um passado comunal, de um mero escapismo em momentos difíceis, mas de uma aposta improvável na fé, quando talvez não fosse razoável acreditar nela.

No fim, as pinturas de Andrei Rublev explodem na tela, únicas imagens coloridas do filme, ao som do sino que toca, ultrapassando os limites da cerimônia oficial com a presença de autoridades. O som emitido pelo sino simboliza o fim do voto de silêncio de Andrei Rublev, o seu desejo de voltar a pintar nas igrejas, apesar do mundo ser marcado por tanto sofrimento. Ao mesmo tempo, o jovem, mesmo sem saber o segredo do pai para construir sinos, redescobre-o não só como um ato de fé, mas também de vontade. Não se trata de um artista que impõe a sua voz e assinatura ao mundo, mas que de corpo e alma se transforma em obra, desaparece no seu próprio trabalho, no próprio espaço da igreja, construído por tantos, na humildade que é, para Simone Weil, “a recusa de existir fora de Deus”. A igreja, desde sua própria construção coletiva até a realização da missa, se apresenta como um espaço comum, onde todos podem entrar e participar, se misturar e se dissolver. Portanto, é a partir do comum, da sua materialidade, das suas sensações que o espaço da Igreja nos oferece uma transfiguração entre o inumano e o divino. No gesto final, o filme se encerra na busca de uma louvação, uma aleluia, uma oração que poderia começar assim: Cordeiro de Deus, que tirai os pecados do mundo, dai-nos não a paz, mas a fé.

Se a vanguarda priorizou o confronto, o choque, o escândalo, a ruptura, para tentar aproximar arte e vida, talvez esta viagem possa estar nos levando mais longe do que esperávamos, não apenas por ruínas de um passado, mas pela possibilidade de um outro presente, rumo a um outro futuro, ou pelo menos a uma outra forma de pertencimento.

A conquista desse pertencimento passa por um sacrifício, como no fim de Andrei Rublev, em que o protagonista renuncia ao voto de silêncio ao ouvir o sino tocar, fruto do esforço de toda uma comunidade, mas também devido ao acaso, a uma graça, que possibilita continuar um pouco mais. Buscar o pertencimento por um sacrifício, quando nada nem ninguém nos acolhe, quando não nos sentimos parte de nada a não ser, talvez, do mais concreto e material da existência, o dia a dia, o cotidiano, na sua surpresa e na sua repetição. É como se estivéssemos num grande claustro, mas sem esperança na ressurreição, no Juízo Final, apenas em viver este dia que ainda nos coube porque do amanhã, quando poderemos já não ser, nada sabemos. Pertencer a este momento e não a outro, pertencer a cada momento de forma tão presente como se ele não fosse mais passar. Uma oração que nos leve não a um outro mundo, mas cada vez mais para este mundo, não para a desistência da ação e do viver, nem para ser como o espectador, absorvido na contemplação do mundo, mas a pertencer ao quadro, estar na paisagem.

Nesse sentido, o fim de Nostalgia desdobra ainda mais o sentido da Igreja como paisagem de fé e pertencimento. O protagonista é um poeta russo, chamado Andrei Gorchakov, alter ego do diretor e exilado na Itália, distante da mulher e do filho. Ele inicia sua viagem à procura de uma igreja, em meio a uma paisagem enevoada, e se aproxima de Domenico (Erland Josephson), o qual, esperando o fim do mundo, trancou sua família por sete anos na esperança de se salvar. Quando sua família é retirada de casa, ele desenvolve a obsessão de cruzar uma velha piscina nas termas Vignoni com uma vela acesa. Sem nunca conseguir, ele parte para Roma, onde faz um discurso apocalíptico, mas sem resultado. Ante os olhares indiferentes dos presentes, ele se queima em uma praça pública, não sem antes perguntar ao protagonista se ele tinha feito o que lhe pedira. O poeta, vítima da existência de fronteiras entre os países e ao mesmo tempo dissolvendo-se entre a Itália e a Rússia, entre o passado, o presente e a frágil promessa de um futuro que irá completar o desejo de Domenico. Gesto pequeno, discreto, menos grandiloquente do que o sacrifício de Domenico ou do protagonista de O sacrifício.

Frame do filme 'O stalker', de Andrei Tarkovski (Reprodução)
Frame do filme ‘O stalker’ (1979), de Andrei Tarkovski (Reprodução)

Se Nostalgia começou por uma viagem pela Itália em busca de uma igreja, é outra que aparece refletida, primeiro, numa poça de lama, ao lado da qual Andrei está, e tendo ao fundo uma casa, talvez a sua. Lentamente, conforme a câmera se afasta, vemos que ele está rodeado por paredes de uma igreja, sem teto, com as portas abertas, misturando-se com a natureza, parte de uma paisagem ao mesmo tempo irreal e reconhecida, uma casa conquistada, não só sonhada ou lembrada, diferente da visão da casa que aparece no fim da viagem rumo ao planeta desconhecido em Solaris (1972), também de Tarkovski. Essa igreja, sem quadros e ícones, é como se tivéssemos que povoá-la, criar outras imagens. Parece que Tarkovski revisita a própria Idade Média não para resgatar a perspectiva inversa que privilegia a multiplicidade de planos, a representação de centros diferentes no quadro, mas ele também não adere pura e simplesmente a uma perspectiva linear e ilusionista, de origem renascentista, centrada no olhar humano. Tarkovski procura desconstruir o humanismo, o antropocentrismo, não revisitando a tradição da vanguarda do século 20, mas a partir de uma tradição medieval.

Talvez possamos aceitar melhor igrejas e templos como ruínas para que eles percam sua dimensão de autoridade, de instituição, do peso de dogmas e normas. É das ruínas desses espaços que pode emergir uma outra religião, um outro templo, uma outra fé, como da velha igreja que o protagonista de Nostalgia (1982) vislumbra refletida na poça de lama.

Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da UFRJ


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