Pai & filho: a liturgia da imagem

Pai & filho: a liturgia da imagem
Alexander Sokurov no festival Open Library (Reprodução)

 

Sob a angústia da influência, o cineasta russo Alexander Sokurov vive tentando “matar o pai”, Andrei Tarkovski, a cada vez que é indagado sobre os efeitos seminais do autor de Andrei Rublev (1966) em sua filmografia. Figuras indissociáveis no imaginário audiovisual da Eurásia moderno-contemporânea, ambos compõem (ao lado de Sergei Paradjanov) a trindade do cinema que transcende a secular intolerância política que ainda perdura no continente.

Além das afinidades estético-espirituais refletidas na afetuosa e esporádica convivência, a relação entre esses dois artistas, que sofreram na pele sucessivas interdições da censura estatal, começou efetivamente em 1974, quando Andrei intercede em favor de Alexander, que teve seu projeto de conclusão de curso no Instituto VGIK recusado por desvios formais antissoviéticos. Graças a uma carta de recomendação de Andrei, Alexander se emprega como diretor no estúdio Lenfilm em 1980, onde realiza seu primeiro longa-metragem A voz solitária do homem (1987), dedicado a Tarkovski, que lhe rendeu a primeira premiação internacional, o Leopardo de Bronze no Festival de Locarno.

Guardadas as diferenças estilísticas em uma trajetória singular esculpida em quase quarenta anos de estrada, Alexander Sokurov é apontado invariavelmente pela crítica como o principal sucessor de Tarkovski, que o via como um dos “raros gênios do cinema”. Em chave épica, em pleno leito de morte, essa condição se evidenciou quando Andrei o elegeu seu herdeiro. “Eu nunca quis ser seu aluno, eu o amava como pessoa. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratava como igual, com ilimitado afeto e confiança. E eu ficava inibido com isso. Eu sentia que ele tinha uma admiração por mim, que de fato eu nunca mereci”, confessou Sokurov.

Impactado por sua morte em Paris, que soube por acaso em Moscou ao sintonizar a rádio durante o período natalino, Sokurov escreveu aos prantos: “Naquele momento pensei que eu próprio estava para morrer, essa foi a maior perda de minha vida. Na manhã seguinte um médico perguntou-me o que havia de errado. Contei-lhe que Andrei Tarkovski havia morrido. – É mesmo? E o que isto tem a ver com você? perguntou o médico gentilmente. – Era parente seu? Não, retruquei”.

Da última vez em que estiveram juntos, o “discípulo” guiou o mestre em Leningrado, pasmo diante de uma multidão de fãs que tinham ouvido falar de Tarkovski enfrentando um cotidiano caótico no exílio italiano, como autêntico intérprete da alma russa, cuja vida, exorta Sokurov, “está aqui para ser investida em cultura e fé, todo o resto é acessório miserável”. Com íntima ambiguidade, o diretor de Arca russa (2002) lembra-se ainda nessa ocasião que, ao se despedirem numa viagem de trem, Tarkovski tirou-lhe um retrato à meia-luz: “Nunca vi essas fotografias, então talvez possa se presumir que imaginei isso tudo. Seria, porém uma bela coisa de se imaginar, não?”.

Embora negue a filiação, é natural a analogia, reforçada sobretudo pelo comovente ensaio documental Elegia moscovita (1988), narrado em primeira pessoa por Sokurov, no qual ele recria as pegadas do mentor e conterrâneo, retornando em planos subjetivos aos espaços em que Tarkovski morou e trabalhou em Moscou. No seu devoto réquiem, Alexander reconstitui com a câmera os últimos passos de Andrei no aeroporto pátrio em direção ao exílio, onde se despediria aos 52 anos da vida-arte com O sacrifício (1986), seu filme-testamento.

Concebido originalmente como tributo aos cinquenta anos de Andrei, a Elegia se prolonga diante do agravamento de sua doença, incorporando imagens de Chris Marker e Tonino Guerra que retratam as filmagens na ilha de Faro. Nesse tributo, Sokurov flagra uma meta-homenagem, dessa vez de Tarkovski a Ingmar Bergman, uma das matrizes centrais de sua obra, evocada tanto na rodagem de O sacrifício no local da casa de praia do gênio sueco, como na participação dos fiéis colaboradores, o fotógrafo Sven Nykvist e o ator Erland Josephson. Uma mútua admiração, explicitada desde a lista dos dez filmes de cabeceira, revelada por Tarkovski, incluindo Morangos silvestres (1957), Luz de inverno (1963) e Persona (1966), até a declaração de Bergman qualificando o autor de Solaris (1972) como “inventor de uma nova linguagem do cinema como espelho da vida, e da vida como um sonho”.

Adeptos de um cinema contemplativo e metafísico, Tarkovski e Sokurov, através de longos planos-sequências, com paleta de cores, luzes e dispositivos distintos, despertam ira e paixão entre cinéfilos, estudiosos e espectadores desavisados. Na contramão ideológica dos revolucionários da montagem como Eisenstein e Vertov, ambos pleiteiam a plenitude da imagem em busca do “tempo real” perdido, o esvaziamento dos personagens, alinhados ao cinema de Dovjenko, Bresson; com a pintura de Brueghel, Caspar David Friedrich, Rembrandt; com a literatura de Tolstoi e Tchekov; e com a ópera de Verdi e Wagner. Enquanto Tarkovski ama o corte seco, as imagens ralentadas, sepiadas, solenes, e oníricas; Sokurov causa estranhamentos, interfere controladamente no ato da filmagem, deformando lentes, sobrepondo vidros pintados, dilatando planos e operando anamorfoses.

Quando o tema é o “espiritual na arte”, é inevitável a polarização entre os dois cineastas russos, como constata o cineasta e roteirista norte-americano Paul Schrader, diretor de Mishima (1985), expert e autor do livro Transcedental Style in Film: Ozu-Bresson-Dreyer. Mesmo reconhecendo a dimensão teológica primordial de Tarkovski, é na arte de Sokurov contudo que o autor diagnostica um marco inaugural da vertente de um novo cinema espiritual cujo estilo conjuga elementos tais como: a economia formal, o diálogo entre o meio e o ambiente com outras tradições como do esteticismo visual, a mediação, o misticismo russo. Em resposta categórica ao roteirista de A última tentação de Cristo, de Scorsese, sobre as reais influências da poética de Tarkovski em seu cinema, Sokurov reafirma: “A estética dele não me constitui uma descoberta, era apenas uma confirmação da minha própria visão. Para falar a verdade, me é difícil responder a essa questão. Diria que tivemos uma forte amizade, mais do que uma colaboração criativa”.

Fabuladores poderosos, os dois cinepoetas impressionam, em igual medida, pela exuberância visual e pela desconfiança que provocam nos historicistas de plantão que os classificam como “vanguarda conservadora”, nostálgicos de uma Rússia icônica e gloriosa. Em Fausto (2011), por exemplo, Sokurov faz polêmico pacto com Putin para viabilizar sua cara expressão artística, vivenciando na carne as contradições existenciais enunciadas por Goethe em sua profecia literária. Se apesar disso, Tarkovski é consagrado como um grande autor da tradição russa, romântico e esperançoso, Sokurov por sua vez, asceta, prefere ser tratado como “europeu” como atesta o seu recente e melancólico Francofonia (2015), um cântico, paradoxalmente inovador e saudosista da antiga potência.

Na condição de estetas humanistas, avessos às fronteiras rígidas e esquemas narrativos, ambos extrapolam os limites naturalistas, sondando, a seu modo, os ritos e mistérios da criação. “Alexander Tarkovski” e “Andrei Sokurov”, como nas melhores famílias espirituais, vistos num plano sequência infinito, invertem – em dupla exposição – papéis, espelhos, escalas e perspectivas. Pais e filhos de uma obra invulgar, com poucos herdeiros, entre eles Terrence Malick de Árvore da vida (2011) e Béla Tarr de Cavalo de Turim (2011), fundam uma liturgia da imagem, com éticas complementares que atravessam o tempo, dando espaço a uma rigorosa estética cinematográfica que dignifica a arte, projetando com luz própria um patrimônio audiovisual intrigante e enigmático.

Joel Pizzini é cineasta, pesquisador, autor de ensaios documentais premiados internacionalmente como “Caramujo-Flor” (1988), “Enigma de Um Dia”(1996)

 

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