Ambiências do sagrado

Ambiências do sagrado
Cena de 'A Infância de Ivan' (1962), de Andrei Tarkovski (Reprodução)

 

Como não poderia deixar de ser, o cinema de Andrei Tarkovski está profundamente enraizado na língua, na cultura e na história russas. Desde seus primeiros longas, A infância de Ivan e Andrei Rublev, o diretor mergulhou em episódios históricos e culturais que estão matizados por detalhes que escapam a espectadores estrangeiros. É verdade, pois, que uma leitura “ocidental” de seus filmes pode se afastar, e muito, de questões que estão colocadas no filme, questões que se dirigem mais particularmente ao espectador soviético nascido durante a Segunda Guerra. Ora, sabemos que esse espectador já não existe, ou encontra-se em número reduzido; como então entender, e por que assistir aos filmes de Tarkovski?

Para Robert Bird, boa parte da compreensão que se pode ter dos filmes de Tarkovski depende de uma correta compreensão de seu contexto, sim, mas os seus elementos (em russo, stikhiia, palavra próxima de stikhii, poesia) são acima de tudo materiais (água, terra, fogo, sons, ruínas, casas). Esses elementos (stikhiia) constituem aquela materialidade que, segundo H.U. Gumbrecht, produz presença, e determinam a atmosfera ou a ambiência dos filmes, caracterizam o seu modo próprio de produzir efeitos (de produzir presença): através de um cinema de elementos (stikhiia) que é um cinema de poesia (stikhii). É, pois, nos elementos materiais que Tarkovski funda a sua visão poética de mundo. Por isso seus filmes afastam o espectador interessado em outros fatores como enredo, personagem ou diálogos.

Tarkovski é um místico. O místico não é necessariamente religioso, é aquele que busca desesperadamente negar que a matéria seja um fim em si mesma e para si mesma. Para o místico, as coisas têm espessura, as coisas significam. Inclusive, o próprio corpo é lugar de significação. Para o místico, as coisas falam. As coisas se transcendem, se metamorfoseiam: a pedra fala, a árvore exprime, a água canta. Em Tarkovski, o místico e o poeta convivem sob o mesmo teto. A chuva de verão que cai numa campina, ou a neblina que envolve os cavalos se lavando à beira de um rio, o vento que varre a plantação de sorgo, as algas que dançam lentamente sob a água transparente de um riacho, o fogo que queima um livro, ou os antigos ícones ortodoxos, tudo isso é elemento de poesia.

Vivendo sempre em condições materiais humildes, e lutando contra adversidades terríveis de produção, Tarkovski quis testemunhar contra a perda da fé nessa vida, decorrente de um processo de objetificação e reificação. Ele se opunha a toda e qualquer forma de “controle” ou “distribuição” dos “meios de produção”, pois toda a forma moderna de produção – industrial – resulta quase sempre em destruição. A destruição e a catástrofe são temas centrais no pensamento de Tarkovski, constituem uma de suas ambiências fundamentais: a destruição da inocência e da infância de Ivan; a destruição da arte em Rublev; a destruição do planeta Solaris; a destruição da Zona em Stalker; a destruição da fé em Nostalgia; a destruição do nosso próprio planeta em O sacrifício.

De acordo com Marie-José Mondzain, os filmes de Tarkovski encarnam, ao modo do ícone bizantino, problemas da cultura moderna: “O ícone”, assevera Marie-José Mondzain, “relaciona uma periferia visível com um conteúdo invisível e transfigurado. Não tem outra existência que não seja liminar, e o limiar que ela assinala é o do infinito”. Particularmente expressivo no que diz respeito ao tratamento poético do sagrado e da perda da fé, tal cinema não faz, como querem alguns críticos, mera apologia do discurso religioso. Antes, dissolve o sagrado e o místico em ambiências visuais e sonoras. Tomar o discurso dos personagens de Tarkovski como uma defesa de princípios religiosos equivaleria a algo como reduzir a polifonia das vozes dostoievskianas a um discurso dominante, o que é, no mínimo, ingênuo. De fato, como leitor esmerado de Dostoievski – como se nota em seus Diários – Tarkovski distribui as vozes de forma dramática e polifônica em seus filmes.

A materialização do sagrado em atmosferas pressupõe uma concomitante desmaterialização, pois é próprio do sistema icônico relacionar o visível e o invisível, o audível e o inaudível. Dito de outro modo, a atmosfera do sagrado, no cinema de Tarkovski, é como a neblina, no momento em que se desfaz, em Nostalgia; é como a superfície nebulosa do planeta Solaris; é como o vapor do copo sobre a mesa em O espelho: está ali, mas está se desfazendo quando a queremos ver. Por isso talvez o cinema de Tarkovski ainda instigue, hoje, o pensamento. Pelo modo como nos desloca para zonas de indeterminação e desejo. E não é na estrutura da visibilidade e na articulação das imagens apenas que está o sentido do cinema de Tarkovski; aliás, não devemos buscar um lugar onde o sentido se ocultaria. Mas então, onde está o seu sentido? Está na própria imagem, como afirma Mondzain – a imagem, essa neblina que se desfaz a cada segundo –, está materializada na tela: “O cinema de Tarkovski faz da tela um lugar atópico, um lugar de não acolhimento do sentido, uma zona de turbulência varrida pelo vento de todos os desejos”. Acredito ser possível conhecer tal zona a partir das reverberações e lampejos das suas ambiências, e entender por que elas nos co-movem em direção a um lugar que não é o meu, e que talvez não seja o nosso. Não, ainda.

Adalberto Müller é professor de Teoria da Literatura e de Literatura e Cinema na UFF. Doutor em Letras pela USP


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