Ou Lula ou nada

Ou Lula ou nada
Acordo com PSB mostra que o que importa a Lula é a hegemonia na esquerda brasileira (Foto: Mauro Pimentel / AFP)

 

Semana politicamente animada esta, principalmente por conta das sabatinas eleitorais dos canais de televisão com alguns dos principais candidatos e pré-candidatos à presidência. A atenção dos interessados em política esteve, na maior parte dos dias, justamente concentrada em ver como se saíam os candidatos ante o jornalismo de emboscadas e pegadinhas em que se tornaram essas entrevistas presidenciais. Eu mesmo, já estava preparando uma coluna sobre como Bolsonaro se portou na arena do Roda Viva, objeto das mais variadas avaliações, quando, para mostrar que política não é só discurso e imagens, Lula e o PT completam uma trama política, que vinha há muito sendo urdida silenciosamente, e que culmina com um surpreendente acordo entre o PT e o PSB. Surpreende, antes de tudo, porque é um acordo em que um partido não entrega ao outro nada daquilo que se poderia esperar de alianças para se eleger ou para governar, como tempo de televisão ou cargos em uma chapa comum. Mas surpreende também por causa das suas consequências sobre candidaturas que, na prática, já estavam postas e nas ruas, e porque foi um movimento importante no xadrez eleitoral para a eleição presidencial de 2018, isolando Ciro Gomes à esquerda, logo depois que o convênio entre o PSDB e o assim chamado “centrão” (na verdade, a direita fisiológica) impediu que o pedetista expandisse para a centro-direita.

Concretamente, o movimento consistiu em dobrar as alianças partidárias dos candidatos do PT nos estados ao projeto nacional do partido que, segundo a sua Executiva Nacional, tem que ser em torno da candidatura de Lula, razão e centro de tudo. O que significou, em primeiro lugar, o sacrifício de algumas candidaturas de petistas aos governos de estados em troca de igual sacrifício de candidatos do PSB. Os exemplos mais notados foram a saída de Marília Arraes em Pernambuco, em favor de Paulo Câmara, versus o sacrifício de Márcio Lacerda em Minas Gerais, em favor de Pimentel. A entrega da cabeça de Marília Arraes foi, além de notável, clamoroso, pois não apenas se trata da única novidade política eleitoralmente importante do PT nestes tempos bicudos para o partido, como é fato que o governador Paulo Câmara foi um dos grandes articuladores da posição dominantemente antipetista do PSB quando do impeachment de Dilma Rousseff, inclusive liberando secretários para ir votar contra ela em Brasília.

Lacerda estrilou em uma veemente Carta aos Mineiros, decretando a sua “indignação, perplexidade, revolta e desprezo” com este acordo nacional. E garantiu que vai continuar na estrada. A militância de Arraes em Pernambuco não fez por menos e já inundou a “live” de Gleisi Hoffmann, nesta quinta-feira, na saída da visita a Lula na prisão, com gritos de apoio à sua candidata, além de ter iniciado em redes sociais digitais a campanha de que “eleição sem Marília é golpe”. Encantada por Lula, Marília Arraes vê em tudo isso uma chantagem do PSB pernambucano, que sequer consegue entregar uma aliança nacional e pediu a sua cabeça em troca de uma mera “neutralidade” eleitoral do partido. E prometeu resistir. Rebeliões à parte, até agora o martelo está batido. E quem o bateu foi Lula.

Em segundo lugar, o acordo garante que o PSB, o maior partido de centro-esquerda depois do PT, desista de uma possível aliança com Ciro Gomes. Tudo o que o PT recebeu efetivamente no acordo, para além da óbvia troca de cabeças, foi impedir que Ciro tenha acesso ao cobiçado tempo de televisão do PSB. É isso, afinal, o que a “neutralidade” do PSB pode significar. Desse modo, o candidato do PDT está isolado na sua tentativa de formar uma aliança de centro-esquerda em que ele, Ciro, esteja na cabeça da chapa. Sonho cultivado, inclusive, por algumas estrelas cintilantes do PT e por muitos intelectuais de esquerda, e para o qual Lula, como se vê, acaba de fechar as portas.

Para os seus militantes, o Partido dos Trabalhadores diz que tudo faz parte da construção de uma grande articulação de centro-esquerda que consiste em, conforme disse Gleisi Hoffmann na referida “live”, “resgatar uma aliança progressista e popular que é necessária para enfrentar o golpe”. É centro-esquerda, segundo ela, mas também inclui o PROS, que não poderia ter mais DNA e odor de “centrão”, e o PCdoB que, se definição programática ainda vale, é um partido bem à esquerda e nada de centro. Na verdade, é indisfarçável até para o lulista tatuado que se trata de mera luta concorrencial na esquerda para impedir que Ciro ocupe uma posição tão forte que possa ameaçar a hegemonia do PT.

Ultimamente, os brasileiros se autoconvenceram de que política é basicamente composta de narrativas, princípios e valores. Os lulistas vinham alimentando as narrativas heroicas de Lula no cárcere fascista e a contraposição épica entre as forças sombrias do golpe e o “campo popular”. Por trás das narrativas, cristalizaram-se convicções indiscutíveis, dogmas mesmo, sobre a eleição de 2018, agora que o PT não se via mais como um partido pragmático que aceitava alianças a torto e à direita (com o perdão do trocadilho), mas um partido de princípios. Eu os sintetizei como os três dogmas do petismo pós-pragmático e são eles:

 

  1. Lula tem algo entre 15-30% dos votos para presidente e transfere, no mínimo,15% para o seu ungido, não importa quem ele seja nem em que momento a unção aconteça. Juntando-se os 15% de Lula com mais uns caraminguás que a pessoa conseguir, o ungido estará certamente no segundo turno.

  2. O PT é o mar em que todos os rios da esquerda devem desaguar. O contrário é uma impossibilidade ontológica. O destino do PT é ser apoiado, não apoiar. E quem quiser o apoio de Lula e do PT deve dobrar os joelhos, penitente, e repetir, compungido, 300 vezes, “foi golpe” e “Lula é preso político”.

  3. O PT é mais importante que a esquerda e o destino de Lula é mais importante que o PT. Como Lula está sofrendo uma injustiça que clama aos céus, fiat iustitia (ad Lulam), et pereat mundus. Aliás, o mundo já pereceu e a democracia já acabou, de modo tal que a única forma de que sejam restaurados é dando a Lula uma chance leal de ser reconduzido à presidência nos braços do povo.

     

Meus amigos petistas punham-se em fúria quando eu repetia isso. Mas eis que, em um só movimento, Lula comprova tudo. De uma só vez, Lula esquece as mágoas do PSB (que entregou Dilma Rousseff ao impeachment e teria tido número para salvá-la, se quisesse) e sacrifica aliados e a autonomia partidária nos estados, tudo para assegurar o seu objetivo maior, que consiste em impedir que Ciro Gomes seja o candidato da centro-esquerda nas eleições de 2018. E isso tudo quando já é claro, até para os mais ingênuos ou mais esperançosos, que não se permitirá que Lula esteja na cédula eleitoral em outubro. Não é, portanto, para garantir o lugar de Lula na competição, mas para impedir que Ciro possa ter este lugar.

Diferentemente da militância que aderia a certas narrativas até ontem, Lula parece não se importar em perder eventualmente a eleição para a direita ou a extrema-direita, o que se torna uma possibilidade ainda mais plausível, ou em perder o argumento de que o PT é um bom sujeito traído pelos amigos e enganado pelas más companhias, que os petistas adoram. A única coisa que realmente lhe importa seria perder a hegemonia na esquerda brasileira. Está definitivamente implantado o lulo-nihilismo, que entrará para as enciclopédias de política com a seguinte definição: Diz-se da posição política, surgida em meados de 2018, cuja bandeira era “ou Lula ou nada”. Do ponto de vista afirmativo, consistia em uma convicção de que a eleição só seria legítima e justa se a candidatura de Lula fosse reconhecida pela autoridade eleitoral, enquanto, por outro lado, firmava a compreensão de que a candidatura de Lula era mais importante: a) do que as chances eleitorais do PT ou da esquerda; b) as eleições; c) o futuro governo do país nos próximos 4 anos. Por um tempo até, houve ainda espaço para um nihilismo retórico e estratégico, que significava que o PT se agarrava taticamente ao nome de Lula, negando haver plano B, até que não houvesse outra alternativa a não ser indicar um “representante de Lula”, um Lula substitutivo, para constar n célula eleitoral, mas com chances de ganhar a eleição. Parece que até esse nihilismo mais moderado, retórico, foi vetado esta semana. Agora é ou Lula ou Lula.

Para o militante, política é narrativa, é épica, é luta do bem contra o mal, é protagonista enfrentando antagonista. Para os políticos, política é narrativa, sim, mas só quando lhes convém, quando precisam convencer corações e mentes. A maior parte do jogo, entretanto, passa longe disso, nos bastidores, nas articulações e negociações, no xadrez dos arranjos e jeitinhos. Quando as negociações e as narrativas convergem, é perfeito e todo mundo fica feliz, ativistas e articuladores. Mas quando colidem, como agora, que se danem as dramaturgias, as imagens, as lindas palavras de ordem. Os militantes, então, que se virem para arrumar um novo enredo, novos papéis, novas falas, novos desfechos capazes de dar conta da nova situação, imposta pelos fatos e pelas vontades.


> Acompanhe a coluna de Wilson Gomes, todas as sextas, no site da CULT

(1) Comentário

  1. Que texto vergonhoso. Me considero agora ex-filiada. “”ungido estará certamente no segundo turno.”” ”’destino do PT é ser apoiado, não apoiar. E quem quiser o apoio de Lula e do PT deve dobrar os joelhos,””.

    Isso virou uma seita. To fora, abraços.

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