Dunker: ‘Nova biografia investe violentamente contra imagem de Freud’

Dunker: ‘Nova biografia investe violentamente contra imagem de Freud’
Sigmund Freud (Arte Andreia Freire)

 

Acaba de ser lançada uma nova biografia de Sigmund Freud, escrita por Frederick Crews: Freud: the making of an illusion (algo como “Freud: a criação de uma ilusão”, ainda sem versão em português).

Focando nos anos de juventude (1884-1900), o autor investe violentamente contra a imagem de Freud, retratado mais uma vez como um egoísta, preconceituoso, desonesto, e novidade, infiel. O texto pretende abalar a comunidade de psicanalistas adoradores do mito fundador da psicanálise e dos seus crentes incautos.

Mas qual seria o interesse de mais uma biografia mostrando que Freud está morto e que a psicanálise é uma fraude anticientífica?

Durante os anos 1990, Crews reuniu uma série de críticas que vinham sendo feitas contra a psicanálise no que ficou conhecido como a “Guerra a Freud”. Tais críticas tinham três procedências: (1) a psicanálise não se enquadra nos critérios propostos por Karl Popper, em 1963, para demarcar o que é uma ciência (2) ela não oferece evidências empíricas de sua eficácia terapêutica, posto que os casos clínicos escritos por Freud apresentavam incorreções e imprecisões, quando comparados com os relatos históricos colhidos junto a ex-pacientes (às vezes 50 anos depois do tratamento) e (3) os conceitos e hipóteses psicanalíticas não são expostos em uma boa forma lógica e não são passíveis de uma prova extra-clínica.

O novo livro de Crews acrescenta a estes argumentos uma nova perspectiva: além de tudo, Freud seria um mau caráter, que mantinha relações sexuais com a cunhada. Portanto, seus “maus modos científicos” eram apenas um extensão de sua pessoa desonesta e imoral.

Neste contexto, parece justo aplicar ao próprio Crews os critérios que ele usou para avaliar Freud, certo?

Crews não tem nenhuma formação em teoria da ciência, metodologia ou epistemologia. Como crítico literário, de prestigiadas universidades americanas, agora aposentado, Crews nunca viu um paciente, não tem experiência em psicopatologia, nem qualquer tipo de prática clínica. Menciono isso para que o leitor perceba o quão frágil é o argumento de desqualificar a vida ou os créditos de alguém para tentar derrubar suas ideias. Afinal, uma crítica pode ser boa, mesmo não tendo sido feita por uma autoridade especialista na matéria.

Em 1995, Crews editou um livro chamado A batalha da memória, no qual acusava a psicanálise de estar por trás de uma série de processos jurídicos movidos por pacientes contra seus familiares, incentivados por terapeutas, que os “forçavam” a criar falsas memórias de abusos sexuais infantis. Crews foi insensível à constatação de que tais terapeutas não eram psicanalistas, de que não é assim que a psicanálise lida com o abuso infantil (incriminando retrospectivamente os pais) e ao fato que as associações de psicanálise repudiaram este tipo de “terapia indutora de memórias”. O argumento de Crews insistia que a psicanálise era responsável por este mito cultural do abuso traumático de crianças.

Por motivos análogos, Crews intercedeu contra a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, adiando em um ano a exposição sobre o material ali depositado sobre o criador da psicanálise. Certo ou errado, Freud teria sido importante para a cultura ocidental, mas Crews o considera indigno de memória. Muitos veriam aqui traços da mesma desonestidade intelectual de que ele acusa Freud. Procedimento semelhante se encontrará em O livro negro da psicanálise (2005), nas afirmações de Onfray ou no livro de Sokal e Brickman sobre “imposturas intelectuais”.

Declarações pirotécnicas são fáceis de fazer. Discussões entre teóricos universitários são chatas e complicadas, cheias de inconclusividades, envolvendo, por exemplo as famosas 300 páginas de evidências clínico-empíricas produzidas pelos psicanalistas em revistas científicas (sim, um pesquisador deu-se ao trabalho de chegar nesta métrica bizarra). Lembremos que “tamanho não é documento” vale para documento científico também.

Nos anos 1960, Crews usou a psicanálise como um método de crítica literária. Ora, Freud jamais autorizou ou estimulou um procedimento psicobiográfico deste tipo. Como se a grandeza da obra de Shakespeare ou Machado de Assis pudesse ser reduzida à vida que eles levaram (e se, por exemplo, mantinham ou não relações sexuais com a cunhada).

Depois do uso irregular do método psicanalítico, Crews voltou-se contra Freud, remanescendo a prática de fazer anatomia moral do autor para julgar a pertinência de suas ideias.

Dizer que a obra de Freud é melhor ou pior porque se encontrou o registro de uma viagem na qual Mina Bernais teria dividido com ele a intimidade de um quarto de hotel, nos confins da República Tcheca, é muita falta de argumento. A psicanálise merece crítica melhor. Ela existe e está disponível na praça, mas não é tão picante.

Crítica à psicanálise

Vejamos as objeções que Crews comprou de outros autores mais sérios. Nos anos 1990, em meio a descoberta de novos anti-depressivos, parecia óbvio que a psicanálise ficaria para trás. Bater em Freud com a vara de marmelo das neurociências era um plano perfeito. Hoje, percebe-se que o efeito de medicações psiquiátricas decresce com o passar do tempo, que faltam marcadores biológicos para os transtornos mentais e que o sonho da felicidade baseada em pílulas científicas está longe de ser realizado (ou, talvez, tenha virado um pesadelo).

Surgiram estudos independentes, feitos por não psicanalistas, mostrando que as psicoterapias psicodinâmicas de longo prazo são bastante eficazes, em muitos casos mais eficazes do que outras psicoterapias. Assume-se que sua combinação com medicação é altamente recomendável para muitas condições. Surgiram provas extra-clínicas de que a hipótese do inconsciente é viável conceitualmente. Muitos achados das neurociências corroboram conceitos psicanalíticos (outros não) e a relação entre psicanálise e neurociências é um debate que prospera, com prós e contras, dos dois lados.

Atacar Freud como se a psicanálise tivesse ficado parada em seus modos de pensar e clinicar próprios do seu início é desconhecer os inúmeros avanços e variações que os psicanalistas fizeram depois de Freud. Seria como julgar a cientificidade ou a pertinência da psiquiatria hoje considerando o que ela era no início do século 20.

Finalmente, o problema da demarcação de uma teoria como científica, o tipo de evidência e a teoria da prova requerida por uma disciplina é cada vez mais definido por aquela área. Alguns argumentam que a psicanálise compreende não uma, mas várias ciências, misturando técnicas e métodos muito diferentes entre si. O modelo baseado em uma única estratégia de fundamentação, análogo ao da física, acaba deixando demasiadas ciências fora do crivo.

Não podemos ignorar que o escândalo da falta de cientificidade parece ter migrado para a própria psicologia científica empírica, quando veio à luz que mais de 60% dos experimentos nesta área não eram capazes de confirmar seus dados (isto é, refaz-se o experimento e ele produz um resultado diferente). Neste aspecto, a psicanálise tem desenvolvido várias considerações sobre os limites e particularidades de sua relação crítica com a ciência.

Portanto, ao que tudo indica, o “novo” trabalho de Crews é apenas uma versão requentada, e mais raivosa, feita para aproveitar a controvérsia em torno do ressurgimento da psicanálise. É um trabalho que destoa das sete ou oito biografias de Freud disponíveis em português ao criar um Freud pérfido e devasso, ainda que palatável para o sabor dos tempos de fake news e pós-verdade.

Se antes Freud estava morto, agora ele parece ter voltado como um zumbi para atormentar ainda mais o sono e a insônia dos que estão atormentados com a cama alheia.


CHRISTIAN DUNKER é psicanalista e coordenador do Instituto de Psicologia da USP e autor, entre outras obras, de  Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento cotidiano (2017, Ubu)

(38) Comentários

  1. Não posso concordar com tudo que o Crews diz,porém talvez seja uma indignação em virtude do endeusamento por alguns psicanalidtas a Freud,isto as vezes me parece insano ou pelo ao menos desnecessário.

  2. Talvez o próprio Freud – e a psicanálise – possam explicar os motivos para a fixação e a agressividade de Crews.

  3. Depreciar a vida pessoal de Freud na tentativa de ratificar a crítica negativa quanto à Psicanálise me pareceu, no mínimo, de nenhum rigor científico, já que isto é a questão que insiste quanto ao próprio Freud e sua Psicanálise.
    Parabéns, Christian!
    Sempre preciso e ético.

  4. Quanto mais estudo psicanálise e compreendo a dinâmica psíquica proposta por Freud, mais me convenço da genialidade dele. Crews deve estar projetando na psicanálise alguma frustração intelectual… Precisa mandar ele pra análise…

  5. Discordo desse autor,a psicanálise é o melhor método de tratamento que temos,e devemos à Freud,Melanie Klein e outros ,suas descobertas! disse:

    Discordo!A psicanálise foi a maior descoberta no Campo psíquico e devemos agradecer a esses gênios que descobriram o funcionamento psíquico do homem!Viva Freud,Melanie Klein!

  6. A contribuição de Freud é de suma importância para aqueles estudiosos que buscam conhecer da alma humana.

  7. Caro Dunker, aqui me brotou essa pergunta: não repousaria a cientificidade da psicanalise – tão contestada – notadamente no pilar da sua recusa em se tornar categórica e dogmática, como uma ciência temporal? Isto é, aí estão seus termos; sua seriedade está na busca, no vasculhamento, por conexões infindamente mais vitais ou primordiais.
    Além disso, tanto quanto você já apontou que Crews ataca o trabalho de Freud majoritariamente através de um Argumentum ad hominem, ele também cai em uma espécie de paradoxo ‘extremista-relativista-sofista-existencialista’ que clamaria ‘não existir verdades (absolutas)’, a não ser esta mesma afirmada por tal instância – ou posto de outra forma, por você mesmo: “parece justo aplicar ao próprio Crews os critérios que ele usou para avaliar Freud, certo?”.
    Concluo fazendo um paralelo. Quando Crews crítica a “intangibilidade” da psicanálise, é como se dissesse que “os sonhos não trazem verdades simplesmente porque são ilusões ilógicas fora da realidade”, mas se esquecendo de que os sonhos, apesar de impalpáveis, têm o potencial de expressar a realidade (sob ou não a luz da psicanálise), pois são fenômenos conectados a ou provenientes de o corpo físico-biológico, real.

  8. Christian parabéns pela resenha sobre o ‘ livro’ de Crews . Como bem disse ele adequa-se aos tempos de ‘ fake news e pós – verdade . O discurso psicanalítico segue com seus efeitos de produção de resistência, quanto mais se renova e ressurge . Obrigada pelo texto. Abraços, Mara Faget

  9. Se o professor Dunker falou, tá falado. Freud é e sempre será o grande mestre.

  10. Importante denunciar mais uma tentativa de atacar o fundador da psicanálise Sigmund Freud, uma das figuras que mais influência exerceu sobre a construção das formas de subjetivação na modernidade e na contempiraneidade.

  11. Parabéns pelo texto que hoje se faz tão necessário para esclarecimento de leigos e especialistas que por não se aprofundar e nem se atualizar devidamente, podem reproduzir informações parciais e muitas vezes tendenciosas. A meu ver a Psicanálise não é a solução para todo e qualquer caso, mas negar a sua importância e a validade de um método que tem mostrado resultados na vida de tantas pessoas e que se atualiza constantemente na prstica clinica e, no mínimo, uma atitude irresponsável.

  12. Esse homem deve ter tido algum tipo de frustração na sua vida com a Psicanálise, vai ver ele passou num psicanalista, não ouviu o que gostaria e o psicanalista não devolveu seu dinheiro kkkkkkk

  13. Concordo com essa avaliação do Christian.
    Esse livro
    é produto da forma de pensar do autor, a qual chamo de pensamento narcísico.

    Hoje apregoo que temos 2 formas de pensar : o pensamento científico; o pensamento narcísico.

    O pensamento cientifico ( que poucos empregam) é buscar a verdade dos fatos sem contaminar nossa visão com nossos desejos.

    O pensamento narcísico é justamente isso: pensar com o ” coração” ao invés de com o cérebro.

    E isso acontece por motivações inconsciente onde o narcisismo do ego impera.

    O pensamento narcísico não quer descobrir verdades, mas sim impor suas verdades.

    E quem ganha com isso ???

  14. Sou psicanalista do Círculo Psicanalitico de Porto Alegre.
    Artigo com boas reflexões e embasamentos !

  15. A psicanálise é cortante. Suportá-la é entregar-se de corpo e alma a algo perturbador. Concordo em gênero, número e grau com Dunker, quando faz essa feliz e argumentativa defesa da psicanálise e não necessariamente de Freud. Ser o pai da psicanálise é apanhar todo dia dos malfeitores e daqueles que tem muito medo dela.

  16. “Finalmente, o problema da demarcação de uma teoria como científica, o tipo de evidência e a teoria da prova requerida por uma disciplina é cada vez mais definido por aquela área. Alguns argumentam que a psicanálise compreende não uma, mas várias ciências, misturando técnicas e métodos muito diferentes entre si. O modelo baseado em uma única estratégia de fundamentação, análogo ao da física, acaba deixando demasiadas ciências fora do crivo.

    Não podemos ignorar que o escândalo da falta de cientificidade parece ter migrado para a própria psicologia científica empírica, quando veio à luz que mais de 60% dos experimentos nesta área não eram capazes de confirmar seus dados (isto é, refaz-se o experimento e ele produz um resultado diferente). Neste aspecto, a psicanálise tem desenvolvido várias considerações sobre os limites e particularidades de sua relação crítica com a ciência.”

    Ainda a mesma versão do embate entre Academia e Liberdade, sempre resvalando o ferro e fogo das circunstancia em quem faltou com a responsabilidade, que certamente resultaria em processo criminal; obviamente ‘a mesma’ intenção.
    Quase que a moral ferida, escondesse motivos óbvios para se expor, e a psicanálise porque inaugurou a possibilidade remota da verdade sem moral, virou banquete!
    Oportunamente lembra-me outro famoso Banquete de Sabedoria.

  17. Muito obrigado Prof.Christian,pelas colocações tão claras e baseadas em sua experiência teórica e clínica.

  18. Que mané….srsrsrsr…. mas acho maravilhoso que Freud volte às páginas com “outro” escândalo sexual: o primeiro foi a própria psicanálise. Quanto ao período (1884-1900) que o “mané” escolheu para investigar o ‘”devasso”, é importante lembrar: ainda não havia psicanálise, ela teve seu início em 1900, quando Freud publicou a Interpretação dos Sonhos…ou seja, ciência ou não, a “arte” do devasso continua imaculada…. kkkkkkk

  19. São muitos aqueles que sustentam os ‘argumentos” deste autor, utilizando-se de informações tendenciosas para desqualificar uma teoria mal compreendida.

  20. Visto que as teorias cognitivo-comportamentais estão investindo pesado, com o conluio médico-psiquiátrico (há críticas ao modelo de políticas públicas em saúde mental referente aos institutos manicomiais por este pessoa da cognitiva-comportamental? Só percebo alinhamentos de do modelo psiquiátrico à este modelo cognitivo, que não tem questionado a fundo, como foram as outras correntes psicológicas), gostaria de saber se há de fato um modelo bem fundamentado à críticas à este modelo da teoria cognitiva-comportamental? Percebo que enquanto se detratam os modelos intervencionistas de longa duração, essa área norte-americana tem-se alimentado disto.

  21. Escrever qualquer um escreve! Mas embasamento, ética, e veracidade, é outra coisa!
    Difamar já é um atestado de burrice e falta de propriedade e profissionalismo.
    Parabéns pelos seus argumentos.
    Adorei!

  22. “Surgiram estudos independentes, feitos por não psicanalistas, mostrando que as psicoterapias psicodinâmicas de longo prazo são bastante eficazes, em muitos casos mais eficazes do que outras psicoterapias. Assume-se que sua combinação com medicação é altamente recomendável para muitas condições. Surgiram provas extra-clínicas de que a hipótese do inconsciente é viável conceitualmente. Muitos achados das neurociências corroboram conceitos psicanalíticos (outros não) e a relação entre psicanálise e neurociências é um debate que prospera, com prós e contras, dos dois lados.”

    Achei essa parte interessantíssima. Sei que este não é um espaço rigorosamente destinado para a divulgação científica, mas acho que seria interessante ser citado ao menos os estudos supracitados justamente para permitir a pesquisa posterior à leitura do texto. Eu sou à favor de uma psicanálise que se mune de informações científicas para o justo debate entre pares.

  23. A Psicanálise é para quem consegue ir além das aparências, além das fronteiras da mente, ou seja, é para corajosos, pois, somente aqueles que têm coragem se aventuram, os demais permanecem em seus túmulos caiados.
    Freud, é imortal, está para além da mente, do passado ao futuro.

  24. Sou fã da psicanálise, considero Freud um gênio, cobrar de seus atos pessoais uma vivência prática da teoria que estava criando é como esperar do religioso uma vida de santidade!

  25. A psicanálise não funciona para transtornos mentais. Quem quiser gastar seu dinheiro com psicanálise para autoconhecimento, tudo bem, a pessoa gasta o dinheiro dela como bem entender. O problema é que as pessoas não conseguem ter uma visão crítica da psicanálise. É só idolatria a Freud e guerra política (que o sr. Christian Dunker “fora Temer” conhece bem.

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