Jean Oury: La Borde, coletivo, transmissão e memória

Jean Oury: La Borde, coletivo, transmissão e memória
Divulgação/Éditions Érès

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Nascido há cem anos, em 5 de março de 1924, o psiquiatra e psicanalista francês Jean Oury faleceu há uma década, no dia 15 de maio de 2014, na Clínica de La Borde, lugar que fundou em 1953, às 11h da noite, como no título de um de seus livros ainda não traduzidos no Brasil: Onze heures du soir à la Borde: essais sur la psychothérapie institutionelle (Editions Galilée, 1980).

Figura-chave do movimento nomeado “psicoterapia institucional”, que teve uma influência imensa sobre as discussões e as transformações importantes que os campos da psiquiatra e da saúde mental conheceram após a Segunda Guerra Mundial, é de se lamentar que seu trabalho seja tão desconhecido no Brasil.

Situada próxima a Cour-Cheverny, no Vale do Loire, região central da França, a Clínica de La Borde – onde, a partir de 1955, Félix Guattari (1930-1992) começou a colaborar – continua a acolher não somente pacientes como também muitos estagiários brasileiros, com passagens longas por lá.

A partir de seu mentor, François Tosquelles, que lhe serviu de grande inspiração para construir um espaço libertário após sua passagem decisiva por Sain-Alban, Oury incitava cada terapeuta e trabalhador social a forjar sua própria caixa de ferramentas, que levasse em conta os encontros mais íntimos.

Amante do coletivo, poeta da atmosfera e da vida cotidiana, Jean Oury tinha uma jinga própria para conversar com os ditos loucos, como se eles não o fossem. Heteróclito, foi leitor atencioso de André Gide, de Francis Ponge, de René Char, de Kierkegaard, da fenomenologia psiquiátrica alemã, da antropo-psiquiatria belga e muito dialogou com o filósofo Henri Maldiney, além do próprio Lacan, com quem esteve em análise durante 27 anos e a quem foi fiel até o fim, tendo participado da fundação da Escola Freudiana de Paris até a sua dissolução.

Em 1984, há 40 anos, logo após a morte de Lacan, ele começou seus seminários em Sainte-Anne, que tocou até abril de 2014, semanas antes de falecer. Crítico ferrenho do lacanismo, lamentava o enrijecimento dos espaços universitários e de grande parte das escolas de psicanálise, assim como a burocratização progressiva dos espaços de cuidado da loucura. Oury nos lembra que, se com Lacan existe o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir, ele acrescenta que com Marx tinha vindo o tempo de transformar o mundo.

Ao longo de 61 anos de trabalho clínico e teórico em La Borde em torno das psicoses, teceu elaborações clínicas muito operantes para todos os trabalhadores do campo da saúde mental que se arriscam a ir ao encontro da loucura. Destacamos aqui o conceito de Coletivo, título de sua única obra traduzida para o português até o presente momento. (O coletivo, Hucitec, 2009). O Coletivo pensado como um operador lógico não para o plural, mas para o singular nos espaços institucionais, lugares onde é necessária a criação de espaços de dizer em contraposição ao normativo, hierarquizado, estabelecido, para que a singularidade de cada um possa paradoxalmente emergir. Sua noção ética “Qu’est-ce qu’on fout là?” [O que diabos estamos fazendo aqui?] nos convida a pensar sobre o desejo de estar onde estamos. Uma pergunta que, segundo Oury, deveria ser feita diariamente. O desejo faz parte da dimensão de transferência e da ética e não recusa diante da clínica e das exigências de nosso tempo.

Sua obra mostra o trabalho em deslocar do homogêneo, serializado, para uma dimensão do diferente, da diferença, do heterogêneo. “Trata-se de constituir um meio onde haja a maior diversidade possível, onde haja uma tablatura de unidades distintivas, o que permite criar lugares muito diferentes uns dos outros” (Oury, 2009, p. 159). Essas são algumas das funções de seu Coletivo, tarefas que continuam sendo realizadas na clínica de La Borde até os dias de hoje e que se ramificam nas práticas dos diversos clínicos que por ali passaram.

Esta homenagem a J. Oury se inscreve na grande importância que damos à sua obra e de senti-la presente, eloquente, ecoando nas nossas experiências coletivas, nas nossas lutas políticas e subjetivas para tornarem a coisa clínica e a vida cotidiana vivas.


ANDERSON SANTOS. Psicanalista, graduado em psicologia, especialista em “Saúde Mental, Imigração e Interculturalidade” pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt. Foi organizador da obra Uma política da loucura e outros textos – François Tosquelles (Ubu e sobinfluencia, 2024), Psicanálise e esquizoanálise: diferença e composição (n-1 edições, 2022) e Guattari/Kogawa. Rádio livre. Autonomia. Japão (sobinfluencia, 2020).

CLARA NOVAES. Brasileira morando na França desde 2005. Psicóloga, psicanalista, doutora em psicologia pela Universidade Paris Cité. Pesquisadora associada ao laboratório Inserm 1018 com a professora Marie Rose Moro. Trabalhou 17 anos na Clínica de La Borde e exerce atualmente em Blois, centro da França, em consultório, em creches públicas e no Pâtes au beurre, experiência coletiva de acolhimento gratuito, anônimo e sem hora marcada para pais, com ou sem seus filhos.


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