Dossiê | Variações sobre a luta de classes

Dossiê | Variações sobre a luta de classes
(Reprodução)

 

No fim dos anos 1970, circulou pela América do Norte e Europa um cartaz em que se lia, em tradução livre do inglês: “A consciência de classe é saber de que lado da barreira você está (veja página ao lado). A análise de classe é descobrir quem está lá com você”. A ilustração nesse material, produzido pelo coletivo feminista anticapitalista Press Gang, era a de uma mulher negra, cotovelo apoiado sobre uma barreira de madeira rústica, no centro da cena, mão na boca, pensativa. De certo modo, a mensagem desse cartaz ressoava a clássica máxima da interdependência entre teoria e prática revolucionária. Ressoa também no Brasil de hoje urgentemente a tarefa intelectual do cartaz; a ofensiva conservadora que se abateu sobre as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros nos encontra com uma análise de classe desorganizada.

Os processos de desorganização da análise de classe são variados, da desmobilização de instrumentos partidários socialistas e comunistas a uma crescente marginalização e até perseguição à tradição marxista na universidade. Dois discursos são especialmente marcantes nesse contexto, o de que as classes sociais são uma abstração irrelevante e o de que em detrimento de uma teoria marcada pelo antagonismo entre interesses materiais deve-se priorizar uma de concertação.

Afirmar que classes sociais são uma abstração irrelevante ou, em outros termos, um mero construto acadêmico é sugerir que a partir delas não se identificam mecanismos reais que afetam a vida das pessoas. A tradição marxista considera que as relações sociais em um sistema produtivo definem mecanismos que têm impacto real na vida dos indivíduos, especialmente a exploração e a dominação. Dominação diz respeito à capacidade de controlar as atividades de outras pessoas; exploração remete a uma relação econômica, em que, entre outros elementos, o bem-estar material de um grupo depende da privação material de outro grupo e, no contexto da exclusão dos recursos necessários à sobrevivência, o grupo em situação de privação material “oferece” sua força de trabalho para os detentores dos meios socialmente necessários para a produção econômica. Afirmar que as classes sociais não são reais é, portanto, o mesmo que dizer que mecanismos como a exploração e a dominação, que as definem pelo menos na tradição marxista, são abstrações irrelevantes; isso é no mínimo ingênuo.

As classes sociais têm impacto tanto em condições macrossociais quanto microssociais. O nível mais geral é o que, na tradição marxista, se chama estrutura de classe, a localização de agentes sociais em relação aos meios de produção de um sistema econômico. Nesse nível, o que se busca entender é como se dá a distribuição dos recursos produtivos em uma sociedade e como a estrutura econômica influencia o comportamento de instituições e grupos sociais. Nas microfundações da análise, busca-se entender a influência das classes sociais nas ações de indivíduos: a associação entre os interesses individuais e os esperados a partir das condições materiais nas relações de produção; a compreensão subjetiva dos interesses de classe; a formação de organizações para manifestar a solidariedade dos interesses de classe; e as práticas políticas para realizar os interesses de classe, em especial as estratégias a adotar em situações de conflito de interesses. Estrutura, consciência, formação, solidariedade e luta de classe são objetos da análise de classe.

O principal desafio da análise de classe não é justificar a relevância real de seus objetos de estudo, mas desenvolver uma formulação suficientemente geral para dar conta de manifestações complexas de relações de classe e estratégias de ação coletiva baseadas em interesses materiais. Esse desafio está associado a um processo de abandono da tese da primazia explicativa das classes sociais: por mais que exploração e dominação sejam mecanismos relevantes, não são os únicos mecanismos relevantes e possivelmente não são os mais importantes para entender a vida social. O abandono da tese da primazia das classes vai na contramão da tradição marxista clássica, para a qual a tendência histórica dos fenômenos sociais é no abstrato explicada pela trajetória das lutas de classes.

Correntes da esquerda abdicaram muitas vezes, incluindo na experiência brasileira recente, de elaborar uma formulação realista da economia política e da análise de classes, para apaziguar e equilibrar circunstancialmente os antagonismos inerentes às relações de produção. Essa estratégia de concertação, mantida a partir de uma “hegemonia precária”– na consagrada expressão do sociólogo Ruy Braga –, em que todos os interesses são de alguma maneira contemplados, tem vida curta e, principalmente, não deixa legado teórico para a elaboração das dinâmicas sociais brasileiras. O desafio intelectual de elaborar e articular a análise de classes no Brasil está colocado e, no contexto de um Estado tomado por agentes da austeridade fiscal e do arrocho, assume urgência.

Este dossiê, intitulado “Variações sobre a luta de classes”, pretende justamente contribuir com elementos para a formulação da análise de classes premente no Brasil. Assim, investigam-se desenvolvimentos sobre as relações sociais no modo de produção capitalista brasileiro a partir de quatro fenômenos sociais concretos: aborto, cidade, processo de trabalho e justiça.

As modalidades de reprodução da força de trabalho implicam necessariamente uma discussão sobre os direitos reprodutivos e mais fundamentalmente sobre as relações entre classes sociais e gênero. A cientista política Flávia Biroli, da Universidade de Brasília, identifica na violência contra as mulheres, em especial na forma política das limitações ao direito ao aborto, a interação da dominação masculina e capitalista.

A formação das classes deve levar em conta os espaços dessa formação. Isso aparece no próprio Marx, para quem a concentração dos trabalhadores em fábricas cada vez maiores viria a ser o estopim para a consciência das condições materiais comuns dos trabalhadores – o que, como se sabe, não se concretizou. As políticas urbanas atuam fundamentalmente na produção formativa das classes hoje e, sobre isso, escreve no dossiê o urbanista João Sette Whitaker Ferreira, da Universidade de São Paulo. Ele busca entender a produção do urbano a partir da exploração e da dominação de classes em sistemas capitalistas periféricos, como o brasileiro.

O processo de trabalho, em especial as tecnologias sociais para a disciplinarização e intensificação do labor, é o tema do ensaio da socióloga Silvia Viana, da Fundação Getúlio Vargas. Uma questão-chave da sociologia do trabalho é descrever o conjunto de técnicas, ou o regime de produção, que é usado para que os trabalhadores atuem com intensidade produtiva máxima. Com o advento das mídias sociais, é possível que se generalize uma modalidade “colaborativa”de dominação do trabalho: talvez não sejam mais necessárias práticas despóticas ou estratégias para que o trabalhador consinta a produzir com intensidade, pois quem gerencia o trabalhador é o aplicativo manuseado pelo consumidor. Viana avalia a modalidade de controle e intensificação do trabalho associada à uberização da produção, em que os explorados, agora sob a forma de autoempreendedores precários, se midiatizam e espetacularizam em busca de recompensas.

O cientista político Frederico de Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, investiga o papel do Judiciário na condução política da classe dominante. Diagnostica tanto a constituição desse instrumento de dominação quanto a agenda conservadora que promove. De certo modo, a judicialização da ação classista dominante é um elemento central para a economia política da Operação Lava Jato e do desigual acesso à justiça.

O conjunto de textos deste dossiê propõe-se a romper com a expectativa de uma análise de classe sob a égide da dicotomia entre burgueses e proletários. Aliás, isso vai na linha corrente de teóricos anticapitalistas em todo o mundo, que se afastaram da metanarrativa do materialismo histórico clássico. Um esforço primeiro da análise de classes contemporânea, em consonância com a tradição marxista, é possivelmente articular a partir de um compromisso igualitário radical as várias explicações para as manifestações de desigualdade e injustiça econômica, buscando de maneira geral identificar as múltiplas contradições do sistema capitalista.

Assim, este dossiê apresenta variações sobre uma mesma temática: os conflitos a partir de interesses materiais em diferentes tipos de relações e situações sociais. Os interesses materiais, nesses recortes do real, coexistem e interagem de maneiras diversas com outras formas de opressão, como gênero, raça e vulnerabilidade social. A crítica ao capitalismo, propõe-se, está na formulação e articulação dessas variações sobre as classes sociais e, especificamente, nas lutas de classes.

A urgência do esforço intelectual aqui proposto é que se coloca igualmente à intelectualidade radical o desafio de formular alternativas programáticas à realidade social. A análise de classe serve tanto para identificar os constrangimentos e obstáculos a uma vida social melhor quanto para diferenciar interesses materiais aliados e adversários, para “saber de que lado da barreira você está” e “quem está lá com você”. Diagnosticada a realidade social, com seus déficits de democracia e justiça, torna-se possível formular uma alternativa profundamente democrática e justa e, na análise dos interesses materiais e suas manifestações políticas, entender o que ainda nos impede de estar lá.


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