Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das mulheres

Direito ao aborto e maternidade: gênero, classe e raça na vida das mulheres
Manifestação pelos direitos das mulheres em Porto Alegre, em novembro de 2017 (Foto: Fora do Eixo (CC))

 


As lutas feministas têm colocado em pauta a regulação dos corpos das mulheres segundo lógicas que se definem em condições de privilégio masculino. O controle por parte do Estado, em sociedades nas quais a política institucional tem sido historicamente reduto dos homens, é apenas uma de suas formas. No cotidiano, os valores que justificam e naturalizam esses controles podem ser ativados pelas religiões organizadas, pelos meios de comunicação, pela escola, por pais ou companheiros, por outras mulheres. Ao mesmo tempo, a violência contra as mulheres que não respondem a esse controle se dá no âmbito institucional e no das relações interpessoais. Mas a regulação não se dá apenas pela recusa de certos comportamentos e identidades ou pela punição dos “desvios”. Ela também ocorre pela incitação de formas de vida “aceitáveis”, pelo estímulo a certos modos de construção das identidades individuais e coletivas – o elogio à beleza, ao recato e à domesticidade é uma de suas formas. E desigualdades estruturais, como as desigualdades de classe, constituem violações e restrições de modo que não é possível tomar as desvantagens de gênero como algo que se define independentemente da dominação de classe.

O feminismo tem colocado em xeque o entendimento de que as regras universais e abstratas do Estado de Direito tiveram e têm como referência todas as pessoas. Mesmo nas correntes liberais, em que o alcance da crítica pode ser restrito, tem sido exposto o fato de que instituições e normas modernas, no Ocidente, implicaram a recusa de direitos às mulheres enquanto utilizavam a linguagem da universalidade e da neutralidade. Liberalismo e patriarcado não são termos antagônicos, como não são liberdade individual e dominação masculina. Premissas e referências normativas importantes, como a divisão entre o público e o privado e a liberdade de escolha, tiveram, e têm ainda, sentidos muito distintos para mulheres e homens.

O quadro se complica quando compreendemos que as formas de seletividade e regulação, que não são neutras numa perspectiva de sexo ou gênero, não o são também em termos de classe, raça, etnia, região do mundo em que se nasce, sexualidade. Isso significa que as mulheres não compõem um grupo homogêneo diante desses mecanismos. Pelo contrário, eles incidem diferentemente sobre mulheres em posições sociais específicas e desiguais. Os corpos são regulados em sociedades nas quais outras formas de opressão e identificação constituem as posições em conjunto com o gênero. Assim, se as relações de gênero não expressam uma natureza diferenciada dos corpos no que diz respeito ao sexo biológico, elas também não se definem ao largo, antes ou depois das determinações de classe e de raça, entre outros eixos significativos das opressões e disputas. Tem sido mais frequente considerar as convergências de gênero e classe nas relações de trabalho. Mas as injustiças reprodutivas estão, sem dúvida, organizadas em uma escala na qual as violações pelo Estado se encontram com a precariedade material, tornando mais agudas as desvantagens das mulheres trabalhadoras, isto é, em uma escala de classe e não apenas de gênero.

É tendo em mente esse modo complexo de regulação dos corpos e de produção do gênero que trato aqui de uma das lutas feministas fundamentais, a luta pelo direito ao aborto. Além de sua importância para a vida e para a cidadania das mulheres, ela dá acesso a conexões que considero importantes entre a crítica feminista mais próxima do espectro liberal, em que o direito ao aborto é situado nas lutas pelo direito de escolha das mulheres, e as críticas e lutas que nos têm sido legadas pelo feminismo socialista e pelo feminismo negro. Nestas, fica evidente que o exercício da escolha e, de modo mais amplo, a autonomia das mulheres têm componentes de classe e de raça que são incontornáveis. O direito a controlar a capacidade reprodutiva foi negado a muitas mulheres negras, indígenas, trabalhadoras e pobres na forma da recusa do direito ao aborto, assim como na forma da recusa do direito à maternidade.  

A linguagem da escolha individual, que organizou largamente o campo da defesa do direito ao aborto pelas mulheres no hemisfério norte a partir de meados do século 20, ressalta o direito a escolher como um contraponto à maternidade compulsória. A importância dessa ênfase na escolha das mulheres e não em um papel social que já pressuporia escolhas é inegável, mas há limitações nessa abordagem uma vez que as condições de escolha podem ser restritas e desfavoráveis, sobretudo para as mais desprivilegiadas entre elas. A assimetria de recursos materiais e simbólicos é um elemento fundamental para compreender as condições em que as escolhas são feitas e, claro, as próprias escolhas.

O direito ao aborto é um eixo central da autonomia das mulheres, e creio que essa afirmação possa ser generalizada. A fusão entre o feminino e o maternal tem sido um dispositivo importante de controle sobre as mulheres e a denúncia da maternidade compulsória esteve relacionada desde o início às lutas pela igualdade de gênero. Sem o direito a controlar sua capacidade reprodutiva, a autonomia na definição de suas trajetórias de vida é fundamentalmente comprometida. A participação feminina em outros âmbitos da vida depende se sua capacidade de definir se e quando serão mães. Sendo mães, essa participação é sensível ao modo como o trabalho é dividido na esfera privada e, sobretudo, às normas e políticas públicas para o cuidado com as crianças e para a proteção no mundo do trabalho das mulheres gestantes e mães.

A recusa ao direito ao aborto mantém na legislação concepções diferenciadas do indivíduo e do direito que têm de definir o que se passa no e com seu corpo, do direito à integridade física e psíquica e à dignidade. O acesso a esses direitos, quando o aborto é criminalizado, é distinto na letra da lei segundo o sexo dos indivíduos. É o que ocorre no caso brasileiro, em que o direito ao aborto é criminalizado com três exceções, que são risco de morte da mulher, gestação resultante de estupro e anencefalia fetal. No Congresso, tramitam vários projetos que pretendem criminalizar inclusive esses casos, entre os quais destaco o chamado Estatuto do Nascituro. Mas tem havido passos em defesa desse direito, como Normas Técnicas editadas no início dos anos 2000 pelo Ministério da Saúde para garantir o acesso ao aborto legal e, mais recentemente, uma decisão do Supremo Tribunal Federal que firma o entendimento de que a penalização é inconstitucional. Nos dois casos, reconhece-se que o problema ultrapassa a restrição à cidadania das mulheres como grupo.

No Brasil, como em outras partes do mundo, as mulheres realizam abortos a despeito da legislação. A criminalização do aborto, no entanto, compromete de maneira aguda a integridade física e psíquica das mulheres negras e pobres. Para elas, a clandestinidade implica precariedade no atendimento, ampliando os riscos que correm. As complicações devido ao aborto inseguro persistem em um contexto de melhoria no acesso das mulheres a direitos e serviços de saúde nos países latino-americanos. Enquadradas como questão de saúde pública no registro internacional predominante, ganham contornos singulares em um continente no qual o aborto é amplamente criminalizado.

As lutas feministas têm sido pelo direito das mulheres a decidir se e quando serão mães. Mas a história dos movimentos em defesa do controle da natalidade se misturou, ao longo do século 20, a políticas racistas de controle populacional. Estima-se que 65 mil pessoas foram esterilizadas por programas para o controle populacional em 33 estados estadunidenses entre os anos 1920 e 1970. Mais recentemente, decisões nos estados de Virgínia e Carolina do Norte determinaram o pagamento de indenizações às vítimas.

Na América Latina, mescladas a estratégias estadunidenses para o controle do crescimento populacional no chamado terceiro mundo, houve políticas de controle que promoveram a esterilização de mulheres negras, indígenas e pobres, com recursos da US Agency for International Development (USAID) e do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). No Peru, as esterilizações forçadas, estimadas em mais de 400 mil, foram condenadas pela Corte Internacional de Direitos Humanos e reconhecidas formalmente pelo governo peruano em 2003 – embora as denúncias contra Alberto Fujimori tenham sido arquivadas naquele país mais de uma vez nos anos recentes, sob o argumento de que as esterilizações massivas não teriam sido definidas por seu Programa Nacional de Salud Reproductiva y Planificación Familiar, mas por falhas no seu desenho e implementação. O caso peruano gerou registros e depoimentos que detalham a violência de esterilizações cirúrgicas realizadas por meio de chantagens, mentiras, coerção e mesmo aprisionamento das mulheres. A pobreza, as características das políticas de controle reprodutivo e controle populacional e a insegurança na maternagem compõem o ambiente em que a esterilização se fez uma opção para muitas mulheres em países como Porto Rico e Índia, entre os anos 1930 e 1950.

No Brasil, ao menos desde os anos 1980, acumulam-se denúncias de esterilização em massa de mulheres das regiões mais pobres do país, levando inclusive à abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional, em 1992. Em 1965, já sob a ditadura instaurada com o golpe de 1964, a International Planned Parenthood Federation passou a atuar no país. Assim surgiu no Brasil a Sociedade de Bem-Estar Familiar, a BEMFAM, que se disseminou principalmente nas regiões Nordeste e Centro-Oeste do país. A partir de então, clínicas privadas levaram a esterilização às mulheres brasileiras, no vácuo de políticas públicas alternativas e com a conivência, e em alguns casos a visão racista e eugênica expressa, de governantes nos níveis nacional e estadual. Foi apenas com a articulação de grupos feministas em defesa dos direitos das mulheres no período de abertura política que a abordagem da saúde reprodutiva se modificou, com destaque para o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado em 1983.

Eugenia, racismo e controle social da pobreza fundamentaram, assim, políticas que fizeram dos corpos das mulheres objetos de intervenções sancionadas. Foi diante desses processos que emergiu a noção de “justiça reprodutiva”. Reconhecendo que o controle reprodutivo é fundamental para o exercício da autonomia e que esta, por sua vez, é uma dimensão da cidadania, feministas negras, de origem latina e asiática, têm assumido uma perspectiva interseccional na definição dos direitos reprodutivos e na agenda de suas lutas. Essa perspectiva busca reconhecer a opressão e a violência no âmbito da reprodução. As histórias de opressão expõem, na vida de mulheres concretas, os efeitos das convergências entre gênero, raça, etnia, classe, sexualidade e origem no globo. O exercício da autonomia, por sua vez, não é matizado pelo gênero isoladamente. A posição de classe produz as alternativas para as mulheres, ainda que o patriarcado – ou a dominação masculina – não possibilite equalizar as condições de homens e mulheres de diferentes classes sociais de controlar, entre outras coisas, o acesso a seus corpos.

A violência está presente na recusa do direito ao aborto, pela criminalização da decisão das mulheres de interromper uma gravidez, tanto quanto nas esterilizações forçadas ou induzidas, que retiram das mulheres o direito de serem mães. Em todos esses casos, a cidadania é comprometida em seus fundamentos. Mas a omissão do Estado também tem consequências perversas. Sem educação sexual nas escolas, a insegurança e a imprevisibilidade no exercício da sexualidade se ampliam. Quem bloqueia o acesso a essa educação engrossa o caldo da violência, das doenças sexualmente transmissíveis, da gravidez na adolescência, da evasão escolar das meninas. As desigualdades estruturais e a ausência de políticas públicas para compensá-las ou superá-las impedem o exercício seguro da maternagem. Este depende do acesso a trabalho e renda pelas mulheres e do respeito à vida de suas filhas e filhos. No controle de recursos políticos e econômicos estão muitos dos que têm trabalhado pela desregulamentação dos direitos sociais e pela larga prevalência da lógica do lucro e da exploração. São, em muitos casos, os mesmos que têm mobilizado uma suposta defesa da maternidade e da família em sua atuação política reacionária. Tratam sistematicamente de uma fantasia, enquanto atentam contra mulheres e famílias reais.

Flávia Biroli é cientista política, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília


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(1) Comentário

  1. Texto muito bem escrito, contudo, penso que para uma transformação efetiva das mentalidades a respeito do assunto, os temas que propõe mudanças, precisam muito ser escritos numa linguagem mais prática, objetiva, explicativa, do que teórica, abstrata, técnica.

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