Da ‘justiça dos pobres’ ao golpe de toga

Da ‘justiça dos pobres’ ao golpe de toga
(Arte Andrea Freire)

 

Conforme o Brasil iniciava sua trajetória de redemocratização, passou-se a falar também em democratização da justiça. Em oposição ao hermetismo social e institucional, ao entulho legal autoritário da ditadura e à negação de direitos, apostava-se em diversos movimentos de democratização do direito e das instituições judiciais. Esses movimentos incluíram processos de conversão de juristas a perspectivas teóricas e práticas críticas e de pretensão emancipatória, por meio da refundação da teoria jurídica e do uso estratégico da lei e das instituições judiciais em favor das classes populares.

Em grande medida apoiados em pressupostos sociológicos marxistas e do pluralismo jurídico, os movimentos da “crítica ao direito”, do “direito alternativo” e do “direito achado na rua”, entre outros, inspiraram o desenvolvimento tanto de um campo de produção intelectual e de reforma curricular no âmbito das faculdades de direito, como de práticas profissionais contra-hegemônicas de mobilização do aparato judicial e de organização associativa dos juristas.

Outro sentido que a democratização das instituições de justiça assumiu foi o das mudanças em sua composição social, por meio dos concursos públicos e da expansão do ensino superior que permitiriam uma maior diversificação social dos juristas, em contraposição ao perfil elitista historicamente a eles atribuído.

De fato, a instituição dos concursos públicos ainda nos anos 1930, somada à expansão do ensino jurídico a partir dos anos 1960 e ao fortalecimento institucional do sistema de justiça a partir de 1988, produziu padrões de recrutamento menos elitistas das corporações jurídicas, alimentados por filhos das classes trabalhadoras e médias expandidas no regime militar, não raro os primeiros da família com nível superior, muitas vezes formados em cursos jurídicos privados e noturnos. Essa mudança também representou um perfil etário mais jovem e maior participação feminina nas carreiras jurídicas, levando alguns analistas a associarem essa diversificação social à mudança cultural nas instituições judiciais.

Do ponto de vista da justiça estatal, porém, o sentido predominante da democratização da justiça foi o das reformas legislativas e burocráticas que garantissem a independência do Judiciário em relação aos poderes políticos e econômicos, simplificassem procedimentos, ampliassem o acesso e permitissem que a lógica individualista e privatista do direito liberal fosse superada pela possibilidade de satisfação jurídica de demandas coletivas. Esse sentido da democratização da justiça – o da reforma judicial – encontrou maior espaço dentro das instituições judiciais e políticas, pela mão de grupos profissionais e intelectuais reformistas moderados, como certas associações e lideranças corporativas, e especialistas em direito processual.

A autonomia administrativa e financeira e as prerrogativas funcionais do Judiciário e do Ministério Público (MP) na Constituição de 1988 foram importantes vitórias desse movimento. A agenda da democracia interna foi também mobilizada por grupos profissionais das bases corporativas e encontrou respaldo na primeira proposta de reforma constitucional do Judiciário apresentada pelo então deputado federal Hélio Bicudo (PT-SP) em 1992.

A experiência dos juizados de “pequenas causas”, iniciada de maneira experimental por juízes gaúchos, foi alavancada pelo Ministério da Desburocratização do governo Sarney – que então a propagandeava como a “justiça dos pobres” – e transformada em política nacional, mais adiante institucionalizada por meio da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de 1995. Tal lei representou uma ampliação significativa do acesso à justiça no Brasil, e foi obra de grupos profissionais e acadêmicos que também seriam responsáveis por outras inovações procedimentais com impacto positivo na oferta de justiça, como a Lei da Ação Civil Pública, que permite ações judiciais em defesa de interesses difusos e coletivos; o Código de Defesa do Consumidor, tido por especialistas como um dos mais bem-sucedidos casos de inovação legislativa, dada sua relativamente forte incidência no âmbito das relações que pretendia regular; e as diversas reformas processuais pontuais que buscaram introduzir os chamados meios alternativos de solução de conflitos – mediação, conciliação e arbitragem – no sistema judicial.

Analisando esse quadro em retrospecto, não surpreende que esses diferentes vetores de democratização da justiça tenham gerado grandes expectativas de transformação na relação entre o direito e a sociedade: a diversidade da composição social das carreiras jurídicas permitira maior diversidade de visões de mundo que, alimentadas por mudanças no ensino jurídico, nas ideologias profissionais e nos procedimentos de resolução de conflitos, permitiriam a reforma interna instituições judiciais, no sentido de uma maior aproximação com as demandas sociais, levando à efetivação da generosa carta de direitos promulgada em 1988.

O que aconteceu, porém, foi que muitas das reformas de ampliação do acesso à justiça iniciadas na redemocratização brasileira encontraram seus limites no caráter excludente e desigual do capitalismo brasileiro, na reprodução de desigualdades sociais e na lógica burocrática do Estado e de seu sistema judicial. Juristas críticos foram confinados a espaços acadêmicos ou ao associativismo contra-hegemônico.

Embora tenham representado aumento quantitativo do acesso à justiça, iniciativas como os juizados especiais e os meios alternativos de solução de conflitos tiveram suas práticas capturadas pelo formalismo e pelas hierarquias da justiça estatal, e por interesses corporativos e econômicos. Tais experiências passaram a expressar o risco de precarização da oferta de justiça a quem não pode arcar com os custos da litigância convencional, embalada pelo discurso de produção de consenso e pacificação que ignora os determinantes sociais dos conflitos, embora útil para a redução de demanda e agilização de fluxos de um Judiciário sobrecarregado, moroso e sujeito a lógicas de produtividade.

A sobrecarga dos juizados especiais com demandas relativas ao sistema financeiro, a serviços públicos privatizados nos anos 1990 e a relações de consumo em geral demonstra que a “justiça dos pobres” foi apropriada por setores do capital fragilmente regulados pelo aparato administrativo do Estado, e que se valem de seu aparato judicial como extensão de serviços de atendimento ao consumidor para a gestão massificada, no tempo e no espaço, de conflitos de base estrutural, mas atomizados em demandas individuais.

O fortalecimento das instituições de justiça, baseado em autonomia administrativa e financeira, amplo leque de prerrogativas e atribuições, e recrutamento por concursos públicos gerou instituições não muito menos elitizadas do que antes, politicamente poderosas e com déficits de transparência e controle social. Os concursos de ingresso cada vez mais disputados e seletivos, aliados a uma remuneração generosa e cheia de benefícios extrassalariais – incluindo o prestígio social –, formaram novas levas de juristas tecnicistas, defensores da ideologia meritocrática e reprodutores do habitus aristocrático.

A capacidade de socialização e reprodução ideológica das instituições judiciais e a hierarquização social dos diplomas de acordo com a posição de classe de seus titulares fizeram com que a expansão do ensino jurídico privado, acelerada nos anos 1990, frustrasse as expectativas de que a maior diversificação social representasse mudanças políticas e culturais do sistema de justiça. Além disso, a diversificação das bases das carreiras jurídicas não alcançou suas posições de cúpulas, dada a prevalência de mecanismos políticos de ascensão e a ausência de reformas mais drásticas nas estruturas de poder internas.

A face mais evidente do associativismo das carreiras jurídicas, hoje, é a do poderoso lobby em defesa de seus ganhos econômicos e contrários à redução de seus poderes, possível graças justamente ao poder que o MP e o Judiciário conquistaram junto à sociedade e ao sistema político, dadas sua legitimidade na canalização de demandas sociais e sua capacidade de influir na política – revendo decisões legislativas, obrigando o Executivo a realizar políticas públicas ou depurando a democracia representativa por meio do controle das leis eleitorais e do combate à corrupção, em nome do interesse público e dos direitos coletivos e difusos.

A reforma do Judiciário de 2004 centralizou poder nas cúpulas judiciais e limitou o potencial democratizante do acesso e das relações internas que havia na proposta de 1992, graças à influência que as agendas neoliberais de reforma do Estado, segurança jurídica para os negócios e limitação de entraves jurídicos ao capital adquiriram nos anos 1990. Se por um lado houve avanços em termos de democratização interna e do acesso à justiça, por outro lado, os tribunais de cúpula tiveram seus poderes na cadeia jurisprudencial aumentados, por instrumentos de restrição decisória das instâncias inferiores, em nome da segurança jurídica.

Os órgãos de controle “externo” do Judiciário e do MP são compostos majoritariamente de membros das próprias instituições controladas, têm como seus presidentes os chefes daquelas instituições e foram sendo gradualmente capturados por interesses corporativos, reduzindo suas atribuições a uma disciplina administrativa geral do sistema judicial, com padronização de procedimentos, imposição de metas de produtividade e controle eventual de infrações de agentes judiciais.

Nesse cenário, é notável a resistência da justiça trabalhista, atacada nas propostas de reforma do Judiciário de FHC e por empresários que, apesar das críticas, a instrumentalizam para a gestão de passivos trabalhistas. Sua sobrevivência aconteceu graças à articulação política de magistrados e procuradores do trabalho, em aliança com sindicatos de trabalhadores. A recente ofensiva contra os direitos trabalhistas no governo Temer, contudo, mostra que a estratégia pode ter mudado: em vez de desmantelar a justiça do trabalho, esvazia-se a regulação jurídica dos conflitos que ela pretende arbitrar.

Por fim, é necessário apontar os problemas de justiça criminal que, denunciados desde os anos 1970, persistem e se agravaram. Os esforços de democratização da justiça civil não foram acompanhados na mesma medida por mudanças institucionais e legislativas na esfera criminal, e as eventuais comoções públicas com a violência policial e os massacres em presídios muitas vezes se esquecem do papel desempenhado pelas instituições judiciais na conivência com o arbítrio estatal e na produção do encarceramento em massa.

Nesse ponto, à desigualdade de classe se sobrepõe a desigualdade racial: o rápido aumento do encarceramento nas últimas décadas esteve baseado especialmente em crimes contra a propriedade e de pequeno tráfico de drogas, e afetou principalmente homens jovens, negros, de baixas renda e escolaridade – os mesmos que são vítimas preferenciais da violência policial.

O protagonismo judicial atual é fruto de um processo de desenvolvimento institucional em cujas raízes estão movimentos de democratização da justiça fortemente alinhados ao projeto de cidadania da Constituição de 1988, quando não a perspectivas ainda mais radicais de emancipação social por meio do direito. O fato de que a cruzada judicial contra a corrupção seja um dos elementos centrais do golpe que permitiu a ascensão de um projeto regressivo e repressivo pode parecer paradoxal – mas não é.

O combate judicial à corrupção conta com apoio popular, da mesma forma como partidos e movimentos sociais agora afetados pelo golpe outrora se alinharam às instituições judiciais na defesa de direitos, no combate a elites políticas e econômicas e na canalização de lutas sociais bloqueadas no Legislativo e no Executivo. A democratização da justiça como ampliação do acesso e fortalecimento institucional se deu sem que se concretizassem os demais sentidos da democratização vislumbrados nos anos 1980: democracia interna, transparência e controle social; oferta igualitária de justiça civil e criminal; diversificação da composição social e das visões de mundo das carreiras jurídicas.

Além disso, o alinhamento acrítico de ativistas e intelectuais de esquerda àquelas instituições, somado à timidez na reforma e na política judicial dos governos federais do PT, também contribuiu  para o quadro atual. Não é por acaso que o ímpeto reformista da justiça dos anos 1980 e 1990 tenha se esgotado justamente durante o governo de conciliação de classes do PT. Essa conciliação aconteceu também no âmbito da política judicial – seja nos limites impostos ao acesso à justiça, seja na intocabilidade das estruturas de poder e dos privilégios das carreiras jurídicas, seja nas concessões aos apelos por segurança jurídica para o capital.

Também não é por acaso que o protagonismo judicial tenha se potencializado após junho de 2013, quando a onda de protestos revelou, ao mesmo tempo, a insatisfação geral com o sistema político e a sua capacidade de blindagem. Entre as bandeiras levantadas em 2013 após a questão das tarifas do transporte público estavam o combate à corrupção e a defesa do poder de investigação do MP.

A partir de 2015, o desdobramento dos protestos em movimentos “à direita” (pelo impeachment de Dilma, contra a corrupção etc.) e “à esquerda” (contra o impeachment, o golpe ou o governo Temer) fez com que os membros da Operação Lava Jato fossem aclamados como heróis nos primeiros, enquanto nos segundos a esquerda se divide entre denunciar o golpismo e o caráter de classe das instituições judiciais, de um lado, e aplaudir acriticamente aqueles juristas como moralizadores da política e precursores de uma crise com potencial revolucionário, de outro.

A dinâmica relativamente autônoma do campo jurídico faz com que a luta de classes encontre projeções refratadas e, portanto, distorcidas em seu interior. O Brasil pós-golpe necessita de um projeto popular não só para a política e a economia, mas também para a justiça. Resgatar as diversas agendas democratizantes do direito e das instituições judiciais, perdidas nas últimas décadas, é condição essencial para a crítica e a transformação dessa dimensão do Estado brasileiro tão ou mais blindada quanto o sistema político, apesar de sua aparentemente maior legitimidade social.


FREDERICO DE ALMEIDA é doutor em Ciência Política pela USP e professor do Departamento de Ciência Política do instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

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