O urbano no contexto do subdesenvolvimento

O urbano no contexto do subdesenvolvimento
(Arte Andrea Freire)

 

O “espaço urbano” é uma base estrutural e sistêmica de infraestruturas, sobre a qual se assentam as edificações. São redes viárias, de transporte, de informação, de serviços, de água, saneamento, luz, sistemas de coleta de lixo, equipamentos, que permitem a vida na cidade. Tal base não pode ser produzida individualmente. É fruto do trabalho social, pela mão do Estado ou com sua intermediação. Ela permite que se produzam localizações – o “lugar” de cada edifício na cidade – cuja qualidade depende da sua situação na rede, da sua inter-relação com seu entorno. Como as infraestruturas não são homogêneas, as localizações são diferenciadas e disputadas pelo mercado. Seu preço, como todo produto do capitalismo, varia em função de seu valor de uso (dado pela qualidade da infraestrutura e sua situação na rede), da demanda por esse bem e das intervenções regulatórias do Estado.

As localizações são, portanto, objeto de disputas, as melhores sendo apropriadas por quem pode pagar por elas, as piores restando para os mais pobres. Além disso, as localizações são produtos que têm valor de troca e que geram, assim, possibilidades de lucros com sua produção e comercialização. Daí três dos conflitos mais recorrentes nas cidades capitalistas: entre os moradores, que disputam entre si as melhores localizações, entre os que fazem uso da cidade como moradia e os que desenvolvem outros tipos de uso (comercial, industrial, etc.) e, por fim, entre os que usam a cidade para viver e os que a veem apenas pelo seu valor de troca.

Assim, qualquer cidade no capitalismo tem bairros mais caros, em localizações mais bem servidas por infraestrutura, com melhor acessibilidade, melhores condições paisagísticas, e ocupados pela burguesia, assim como localizações mais afastadas e menos acessíveis, menos servidas por infraestrutura e equipamentos, mais baratas e ocupadas pelas classes populares. Além desse típico conflito de classes, há a permanente tensão imposta pelos setores do mercado imobiliário e da construção civil, atuando para obter lucros com a produção e a venda dessas localizações e especulando sobre seu preço.

Nos países centrais do capitalismo, onde o modelo keynesiano do Estado de Bem-estar Social promoveu forte regulação pública, esses conflitos foram e ainda são mediados pelo Estado para, em alguma medida, amenizar as distorções. No esforço de construção de sociedades de consumo de massa para superar a crise estrutural (e urbana) dos anos 1930, a garantia de moradia era uma condição essencial, e foi atendida por políticas públicas de produção e acesso à habitação e um sistema urbano funcional e razoavelmente democrático.

O pensamento urbanístico da época defendia o conceito da cidade densamente ocupada em suas áreas centrais, mais bem-dotadas de infraestrutura, como forma de racionalizar e democratizar o seu uso. A casa monofamiliar em grandes lotes, tipicamente burguesa, seria relegada aos subúrbios periféricos. O Estado procurava homogeneizar a oferta de infraestrutura e implantava os chamados instrumentos urbanísticos para regular a produção do espaço urbano. Com tributações diferenciadas, pagamento pelo direito de construir e outros mecanismos do tipo, cobravam-se dos mais ricos taxas para “compensar” o privilégio de usufruir de boas localizações produzidas graças à infraestrutura pública.

É bem verdade que tal modelo não reverteu as desigualdades da cidade capitalista, mas com certeza as amenizou. Cinturões operários e subúrbios intermediários de menor qualidade urbanística se contrapunham a bairros de alto padrão, altamente valorizados. Mais adiante, esse sistema não conseguiu deter a onda neoliberal da era Thatcher/Reagan, sucumbindo ao avanço inexorável e predatório do capital financeirizado sobre o urbano. Competição entre cidades, revitalizações gentrificadoras e grandes projetos urbanos tornaram-se o cardápio dominante. Hoje, embora ainda mantenham parte da sua racionalidade democrática, as grandes cidades do mundo desenvolvido vão tornando-se bolhas imobiliárias de alta valorização, inacessíveis à grande maioria dos cidadãos, e cada vez mais confrontadas à pobreza urbana.

Fica clara a importância do Estado nesses processos. Porém, no Brasil, este é idealizado segundo o modelo de bem-estar social, das políticas públicas que se sobrepõem aos interesses privados, embora isso nunca tenha ocorrido por aqui. Nosso Estado tem uma natureza bastante diferente e peculiar; muito longe de promover a construção de uma nação autônoma e socialmente justa, ele foi instrumentalizado pelas classes dominantes, de perfil liberal, para servir aos seus interesses. O “Estado patrimonialista” caracteriza-se, para resumir, pela imiscuição sistemática entre o interesse privado e o público, em detrimento do segundo.

Seria, portanto, um equívoco acreditar que a extrema desigualdade na oferta de infraestruturas, que caracteriza nossas cidades, é consequência “natural” de um “crescimento populacional acelerado” ou demonstração de alguma “incapacidade” do Estado em enfrentar a questão da desigualdade urbana. Não, a maneira como conduzir a produção do espaço urbano é uma questão de política pública, e reflete as lógicas perversas do patrimonialismo, em que o que interessa é tão somente a estruturação dos bairros ricos, sintomaticamente chamados de “nobres”, deixando-se de fora a população pobre. Há infraestrutura onde se quis que houvesse, não há onde se deixou de fazer, e tais diferenças não são resultado da “falta de planejamento”, como se quer fazer pensar, mas de um planejamento às avessas – se considerado o interesse público – bastante eficaz nos seus objetivos de produzir a segregação.

Impactos ambientais crescentes, sistemas de transporte cada vez mais extensos, gestão de serviços urbanos complexos são desafios enormes mesmo nas grandes cidades do mundo desenvolvido. Nos países em desenvolvimento, tornam-se quase intransponíveis, em razão da desigualdade social, que joga – não por casualidade – milhões de pessoas de menor renda em uma condição de vida de extrema precariedade. O patrimonialismo, expresso no que Florestan Fernandes chamou de um “Estado sincrético”, gera outros problemas: clientelismos, corrupção endêmica, inversão das prioridades de investimentos, arrocho financeiro.

As marcas dessa lógica bastante perversa de urbanização são muitas, e desde o início do século passado os investimentos públicos nas nossas maiores cidades concentravam-se nos bairros nobres no centro, objetos de vistosos planos urbanísticos importados da Europa. Nas periferias, amontoava-se a população mais pobre, necessária ao funcionamento da cidade, em cortiços ou nas primeiras favelas, sendo expulsas para mais longe à medida que avançava o mercado imobiliário. Com o advento da “industrialização com baixos salários”, em meados do século, a demanda por mão de obra barata para nossa inserção competitiva na economia internacional transformou essas periferias em abrigo para um imenso exército industrial de reserva. Sem investimentos públicos, as periferias autoconstruídas, como já mostrou Francisco de Oliveira, representaram o expediente mais eficaz para manter o baixo custo de reprodução da força de trabalho.

No Brasil, a concentração indecente da riqueza se reproduz na injusta divisão espacial urbana. Os investimentos, de maneira ostensiva, se deram exclusivamente nos quadrantes mais ricos das cidades. Como já demonstrou Flávio Villaça, as elites conduziram seu crescimento em simbiose com o mercado imobiliário. Porém, nem mesmo nesses bairros privilegiados criou-se uma urbanidade virtuosa: a opção pelo automóvel em detrimento do transporte público de massa e a absoluta liberalidade para com o mercado imobiliário geraram problemas como o tamponamento dos rios, a impermeabilização desenfreada, a densificação construtiva sem regras e sem limites, a falta de reserva de terras para a produção de moradias para os mais pobres.

Ao contrário do modelo urbano do bem-estar social, aqui, as regiões com melhor infraestrutura foram acaparadas pelas elites, que construíram para si, na cidade “nobre” bem infraestruturada, seus bairros-jardins que deveriam estar nos subúrbios. Uma pendularidade disfuncional decorre dessa concentração do capital nos bairros ricos, fazendo milhões de pessoas deslocarem-se diariamente da periferia distante para o seu trabalho, em sistemas de transporte obsoletos e subdimensionados. Enquanto isso, a cidade rica se fortifica, se isola, renega a necessidade do espaço público e da rua. Nela, não há pobres a morar, tampouco negros. Produzimos cidades dignas do apartheid.

Para manter tal onipotência espacial, as classes dominantes se fazem valer – graças também ao seu controle sobre o judiciário – de outras marcas do patrimonialismo: a predominância absoluta do direito à propriedade sobre qualquer outro, inclusive o de moradia, e o limite muito tênue e relativo entre legalidade e ilegalidade. Afinal, o que é ilegal? Movimentos de moradia ocupando prédios vazios irregulares das áreas centrais são ilegais, mas não o são resorts, estádios, shopping centers ou grandes condomínios que ocupam sem constrangimento as orlas marítimas ou outras terras públicas nas cidades. Ocupações informais sobre áreas de proteção ambiental são proibidas, mas mansões nas encostas da mata atlântica litorânea ou “rodoanéis” rasgando mananciais não o são. Nas aprovações de plantas das residências de luxo, são admitidos como legais minúsculos quartos de empregada sem iluminação, aprovados cinicamente como se fossem “depósitos”, numa atualização da nossa herança escravocrata. A lógica dos dois pesos e duas medidas tornou-se a regra que conduz a ocupação do espaço urbano, com claro privilégio para as classes dominantes.

Importante observar que a atuação perversa do Estado é fruto da ação dos governantes eleitos, e reflete uma lógica que se transpõe para o conjunto da sociedade, nas relações sociais e nas posturas de cada um. Podemos falar de um Estado patrimonialista, mas mais correto seria nos referirmos a uma sociedade patrimonialista. Seu caráter, inicialmente restrito a um estamento dominante, generaliza-se, como se, ao ascender na pirâmide social, cada cidadão passasse a reproduzir, na sua esfera de poder e no seu círculo social, a mesma lógica de dominação.

No decorrer da história, aos donos de terra, que afirmam seu poder desde o sistema de capitanias e o reforçam com a transição para o urbano, somaram-se a elite comercial imigrante, a burguesia industrial nascente e uma sociedade de consumo minimamente necessária; com isso, foi-se constituindo uma classe dominante de fato, mais ampla e mais complexa. A onipotência das elites, para além da instrumentalização do Estado, se alastra para as formas de domínio sobre a terra, para as dinâmicas de controle da força de trabalho, de imposição da cultura branca europeia sobre outras manifestações culturais populares, o racismo, a segregação. Não à toa as “classes médias” se referem aos segregados da cidade como vagabundos, imundos ou bandidos. É o reflexo de uma cultura de intolerância à pobreza.

Muito se estudou sobre os traços da nossa formação nacional, desde os efeitos da condição subalterna, associada no capitalismo mundial, até aspectos endógenos como a miscigenação, o favor, o coronelismo etc. O que menos se analisou foram as consequências desse modelo sobre a formação do urbano, em que o poder dominante não planeja a superação do atraso, mas confunde; não organiza, mas desestrutura; não facilita, mas embaralha os procedimentos burocráticos e administrativos; não é ético, mas tolera o favor, o clientelismo, a corrupção, não por incompetência, mas por ser extremamente eficaz no objetivo de emperrar a democratização do urbano. É a manutenção do arcaico que garante uma modernidade restrita a poucos, são as periferias pobres que, literalmente, constroem a moderna cidade rica.  

Se assim o quisessem, os que conduzem o Estado teriam muito poder de transformação. Mas como o tempo de implantação das políticas urbanas é muito superior ao ciclo eleitoral de quatro anos, raros governantes aceitam fazê-lo. E, quando mostram ser possível, como com a aprovação de um Plano Diretor verdadeiramente inovador e democratizante em São Paulo em 2014 (premiado, inclusive, pela ONU), a falta de estruturas institucionais que garantam a sua continuidade leva a que sejam sistematicamente desfeitos a cada novo ciclo eleitoral. Porém, o tensionamento a níveis insuportáveis desses antagonismos urbanos acaba levando a mudanças, ao rompimento da conciliação, à conscientização da importância do resgate do público. É sintomático que as manifestações ocorridas em junho de 2013 tenham girado em torno de reivindicações de caráter eminentemente urbano.


JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e do Mackenzie

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