Mais um acordo pelo alto

Mais um acordo pelo alto
(Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

 

Durante todo o ano de 2023, um coletivo composto de ativistas vindos dos mais variados setores procurou instaurar um Tribunal Popular para julgar os crimes do governo Bolsonaro. Logo após a sua derrota nas últimas eleições presidenciais, estava claro que a extrema-direita brasileira podia ter perdido uma eleição, mas não fora derrotada. Ela saía do governo paradoxalmente fortalecida, com governadores nos três principais estados da economia brasileira e uma bancada parlamentar grande, aguerrida e ideologicamente coesa.

O ano de 2023 mostrou que o diagnóstico estava certo: a extrema-direita conseguiu operar colocando limites claros ao governo federal e às forças progressistas nacionais. Isto ocorre não apenas devido à atuação parlamentar, mas devido à força orgânica que ela tem no interior de setores da sociedade civil. Vimos um exemplo terrível dessa capacidade de limitação na promulgação recente da lei contra o assédio feminino, lei que ficou conhecida como “Não é não”. Esse é um exemplo interessante por mostrar o que significa governar o Brasil, hoje.

Em uma flagrante contradição de princípio, a lei não se aplica a discursos e práticas em igrejas e locais de culto. A exceção só pode dizer duas coisas: ou o Estado reconhece que práticas sociais baseadas em ideias de “hierarquias e lugares naturais” entre gêneros são legítimas como formas de vida; ou o Estado reconhece que sua defesa da igualdade é apenas estratégica, ela vai até onde não há tensão social. Mas uma força política organizada a partir da defesa da igualdade radical não pode ser paralisada por tensão social alguma, pois nenhum processo real de extensão da igualdade será feito sem fricção e resistência. Ela não pode temer o conflito, pois todo recuo em assumir um conflito é uma forma de fortalecer as forças que combatemos. Nesse sentido, podemos mesmo dizer que uma lei constituída dessa forma pode até ser apresentada como um avanço social, mas acaba por produzir seu contrário, a saber, o fortalecimento institucional de forças regressivas. Pois será necessária uma força três vezes maior para agora conseguir mudar a lei e efetivamente universalizar um direito de igualdade inquestionável. Assim, uma intenção louvável conseguiu produzir seu contrário.

Foi por entender, desde o início, que situações como essa seriam a regra que o coletivo procurou sensibilizar a opinião pública para o fato da memória ter se tornado, no Brasil, a questão política central. Não era possível pensar em processo algum de anistia a crimes cometidos no governo passado. A clássica tendência nacional de anistiar crimes de Estado, um dos fundamentos da instauração da Nova República, havia nos levado a uma democracia frágil, limitada e assombrada pelos piores fantasmas autoritários.

Por isso, o coletivo lançou, no final de 2022, um manifesto e abaixo-assinado intitulado “Anistia nunca mais”, pedindo a instauração de um Tribunal Popular para que a sociedade se mobilizasse e desse aos poderes constituídos um sinal claro de rechaço aos crimes contra a saúde pública cometidos na pandemia e aos crimes contra a democracia constituída. A ideia inicial é que tal tribunal seria acompanhado também de um documentário sobre sua instauração e sobre como uma sociedade, como a brasileira, assume para si a tarefa de velar pelos seus mortos, responsabilizar os poderes de Estado e as forças sociais que nos levaram à pior catástrofe humanitária de nossa história recente, assim como assume para si a tarefa de responsabilizar quem procurou, durante todo esse tempo, aterrorizar a sociedade brasileira com ameaças contínuas, com projetos contínuos de golpe de Estado.

Então veio a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023. Se me permitem um comentário de ordem pessoal, foram anos e anos em que vários analistas políticos insistiram que o Brasil vivia sob a ameaça contínua de golpe. E poderia continuar esse artigo descrevendo as inumeráveis vezes que fomos ridicularizados, chamados de paranoicos, entre tantas outras amenidades, não por articulistas de direita, mas por articulistas pretensamente progressistas. Hoje, não deixa de ter lá sua ironia perceber todos eles descobrindo, com ar estarrecido, que havia realmente um projeto de golpe em marcha, passo a passo, e que mesmo que não tenha sido realizado, foi paradoxalmente vitorioso.

Pode-se dizer que o 8 de janeiro foi vitorioso por duas razões. Primeiro, ele mostrou como a extrema-direita se tornou uma força insurrecional. Derrubada de monumentos, profanação de espaços do poder, mobilização de populares anônimos que ganham força inaudita: tudo isso faz parte das dinâmicas clássicas de processos insurrecionais. Só que agora esses processos têm um sinal invertido, pois a extrema-direita é a única força política de ruptura em nosso tempo. As práticas insurrecionais migraram para a extrema-direita. Nada disso foi desmobilizado, mesmo depois da reação governamental e da prisão espetacular de alguns populares. Ao contrário, as forças da extrema-direita continuam orgulhosamente atuantes, seus eleitores continuam no mesmo lugar. Não há pesquisa alguma que mostre retração de intenção de votos por causa do que ocorreu em 8 de janeiro. Deveríamos começar todas as nossas análises desse ponto.

Segundo, ele foi vitorioso porque todo o dispositivo de sustentação e de planejamento da insurreição foi preservado. Não há militar algum preso, empresário algum preso, fazendeiro algum preso, a não ser quem preparava a explosão de uma bomba no Aeroporto de Brasília. Em larga medida, o aparato de financiamento e logística está intacto. Quando o 8 de janeiro ocorreu, havia uma possibilidade de reação forte nas semanas que se seguiram. Isto teria sido vital para a democracia brasileira. Não foram poucos os que lembraram da necessidade de afastar a cúpula militar, depurar politicamente as polícias (inclusive proibindo policiais de participarem de eleições legislativas), modificar radicalmente o processo de formação das forças militares e julgar quem estava na linha de frente da organização, não só quem saiu quebrando a Esplanada dos Ministérios.

Como já era imaginável que nada seria feito nesse sentido, o coletivo procurou impulsionar a coleta de assinaturas para o Manifesto contra a anistia. Ele chegou a mais de 100 mil assinaturas. Então, para conseguir juntar forças, foi criada a ideia de organizar um ato na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, para a entrega das assinaturas. Membros do governo foram convidados, assim como inúmeros parlamentares. Vieram apenas dois parlamentares dentre os mais combativos de nossa legislatura. Todas as tentativas de se aproximar de membros do governo foram rechaçadas sob a alegação de que o governo não deveria ter pressão externa em assunto tão sensível.

Ocorreu então o ato de entrega das assinaturas em um auditório com, mais ou menos, 400 pessoas. Vários setores da sociedade civil, torcidas organizadas, coletivos de mães de filhos assassinados pela polícia, organizações de direitos humanos: todas estavam lá. E a presença da sociedade civil acabava por sublinhar ainda mais a ausência da classe política. O que era compreensível já que nos preparávamos para um dos famosos “acordos pelo alto” que tanto marcaram nossa história e que tanto nos fragilizaram. O acordo era mais ou menos o seguinte: os militares voltavam para a caserna intactos, Bolsonaro era declarado inelegível (o que não fazia recuar em uma linha o bolsonarismo), os setores empresariais e do agronegócio que apoiaram o governo teriam todos seus interesses econômicos atendidos, não seriam penalizados em nada, e preservaríamos a impressão de que o Brasil voltou ao normal, que a democracia venceu. Histórias como essa são legião em nosso continente latino-americano. Essa é só mais uma delas. Assim, se for perguntado por que a democracia brasileira reagiu mal à tentativa de golpe do 8 de janeiro, por que ela (contrariamente ao que se lê atualmente) continua frágil e vulnerável, a resposta verdadeira é: porque tentamos, mais uma vez, resolver tudo produzindo um acordo pelo alto em um momento no qual, ao contrário, seria necessário justiça e reconhecimento do dolo.

No entanto, de nada basta responsabilizar o sr. Jair Bolsonaro se todo o resto do iceberg passa incólume. Seria necessário não apenas um julgamento de indivíduos, mas um julgamento de estruturas. A instabilidade política nacional, assim como a indiferença atroz que fez do Brasil um país com um governo antivacina e responsável direto pelo número criminoso de mortos na pandemia, foram frutos de um projeto no qual forças armadas, agronegócio e burguesia rentista têm responsabilidade estrutural. A questão correta é: o neoliberalismo autoritário que fez do Brasil seu laboratório pede, ao mesmo tempo, um horizonte político imune a pressões populares e um horizonte de acumulação imune a qualquer catástrofe humanitária, seja ela uma pandemia ou uma crise ecológica. Ele exige a violência do silenciamento político da sociedade e a violência da indiferença em relação aos custos humanos e ambientais da retomada da lógica da acumulação primitiva. Vencer esse projeto começa por não tentar compor com ele, não apagar seus crimes e violência em nome de uma governabilidade cada vez mais reduzida à condição de gestora da ordem. Pois podemos ter certeza de que ele voltará, como ele está a voltar em vários outros países da ordem capitalista.

Bem, ao final, o coletivo decidiu que seria o caso de transformar a natureza do documentário. Não mais um documentário sobre a instauração de um Tribunal Popular, mas sobre as dificuldades em instaurar um Tribunal Popular no Brasil atual. Resolvi contar essa história por acreditar que ela diz algo de importante sobre o lugar em que nos encontramos atualmente e que devemos intensificar nossa atuação e convencer mais pessoas dessa necessidade inescapável de nossa geração.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.


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