A imaginação grotesca bolsonarista

A imaginação grotesca bolsonarista

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Em 2015, em meio a onda de protestos exigindo o impeachment de Dilma Rousseff, um sórdido conjunto de fotos circulava pela internet. Em meio ao noticiário político-farsesco cujo monopólio era compartilhado entre as imprevisíveis fases (não para certos repórteres da Globo) da Lava Jato e as movimentações de Cunha, Temer, Neves & associados, a existência dessas fotos foi tomada como uma ocorrência menor, uma piada um tanto mais vulgar (não muito) do que a maneira com que os editorialistas do Estadão e da Veja tratavam a gestão petista.

Nas fotos, vemos carros em postos de combustível, e todos trazem um mesmo adesivo. Pregado em torno da entrada da bomba de gasolina, eles representavam a presidente petista de pernas abertas, sorrindo ao ser “penetrada” pela fálica mangueira de combustível.

O germe da estética do que viria a ser chamado de bolsonarismo está contido nessa forma de “protesto” contra a inflação – um dos poucos problemas nacionais que, ao lado da violência e da corrupção, escandaliza certa classe média. Não por coincidência, a adesão à gramática grotesca podia ser notada na mesma época nas convocatórias para as manifestações antipetistas veiculadas por organizações como o MBL e o Vem Pra Rua. E nos próprios atos contra Dilma, as referências grotescas abundaram, sem serem devidamente assinaladas pela cobertura televisiva.

Alusões ao sistema reprodutor e excretor, piadas sobre a aparência física de seus antagonistas, grosserias pretensamente humorísticas e a concordância com ideais autoritários constituem o arsenal retórico dos antipetistas, e não apontam só para a falta de noção da extrema-direita. Tampouco são escolhas aleatórias: a estética do grotesco, com seus “deslocamentos escandalosos de sentido”, “invocação de clichês culturalistas”, “disparidades chocantes” e concessões ao “imaginário coletivo escatológico”, como a descreve o casal de filósofos Muniz Sodré e Raquel Paiva, insere-se numa tradição nacional de brejeirice e pantominas insólitas de enormíssimo apelo popular.

Essa “linha evolutiva”, como talvez a classificasse Caetano Veloso, inicia-se no século 19 com o teatro de revista que escancarou os costumes das classes médias da então capital do Império, ressurgindo nos tabloides ilustrados da República Velha e influenciando, décadas depois, tanto a dramaturgia vanguardista de um Nelson Rodrigues quanto os jornais popularescos como o Notícias Populares e as chanchadas cinematográficas, desaguando nas pornochanchadas da Boca do Lixo paulistana e nos programas de auditório da década de 1990.

Sempre divergindo da autoimagem que as elites culturais construíram de si e do “povo brasileiro”, estas expressões tiveram o mérito de radiografar muitos dos preconceitos, dos desejos e da sensibilidade dessa massa heterogênea a que chamam “o povo”, criticando-os em alguns momentos e corroborando-os em tantos outros. O acolhimento popular que essas expressões alcançaram indica que, tanto quanto a tropicália, o Cinema Novo, o samba ou a bossa nova, também elas foram certeiras em captar e ajudar a erigir o que seria a tal “brasilidade”.

Essa chocante concepção da brasilidade traduziu-se nas indumentárias militares dos manifestantes nos acampamentos golpistas no fim de 2022, na ridícula agressividade bilíngue (We won’t be another Venezuela! etc.) em certos cartazes empunhados nas ruas, nos discursos gaiatos no “cercadinho” (“eu sou imbrochável e incomível”, disse Jair) e na paranoia burlesca que embasou as teorias conspiratórias bolsonaristas. Tais expressões, naturalmente, não surgiram do nada: o bordão segundo o qual “bandido bom é bandido morto”, por exemplo, finca raízes nos “esquadrões da morte” surgidos no Rio de Janeiro nos anos 1950, embrião das atuais milícias; e momentos infames como a “dancinha do impeachment”, performada por manifestantes cearenses em dezembro de 2015, remetem simultaneamente aos passos das bailarinas do Faustão, às paradas dos 7 de setembro e ao didatismo erótico de certas danças de axé music. Deliberado, o recurso ao grotesco trata-se, diria Sodré, de uma das “estratégias sensíveis” a que os antipetistas lançaram mão em sua tentativa exitosa de cativar o apoio popular.

A gramática do grotesco não se materializa apenas em obras de arte, como num quadro de Goya ou num filme de Cronenberg, mas pode ser vista e sentida nas relações mais corriqueiras e também nas mais “elevadas” – numa piada de churrasco de domingo ou num discurso na bancada da ONU, como já demonstrou Jair.

Tanto quanto o “belo” ou o “harmônico”, o grotesco “funciona como signo de comunicação, abrindo-se para uma semântica do imaginário coletivo e fazendo-se presente na ordem das formas sensíveis que investem as relações intersubjetivas no espaço social”. Como se dá esse investimento, e com quais efeitos? Segundo Paiva e Sodré,

o grotesco subverte as hierarquias, as convenções e as verdades estabelecidas. Subverte as figurações clássicas do corpo, passando a valorizar as vinculações corporais com o universo material, seus orifícios, protuberâncias e partes baixas. Alimentação, dejeção, cópula, gravidez e parturição compõem constantes na imageria grotesca.

O grotesco, assim, faz “descer ao chão tudo aquilo que a ideia eleva alto demais”. Sua eficácia crítica, quando direcionada à classe política, é portanto altíssima; mas pode também, e geralmente é o que ocorre, descambar da crítica para o escárnio puro e simples – no popular, frequenta o perigoso limite “avacalhação”, esvaziando-se assim de qualquer potencial construtivo.

Semelhante eficácia, argumenta Sodré, funda-se nas “vivências emocionais primordiais” do ser humano, quando “o psíquico e o corporal revelam-se em estreita conexão” – daí a profusão de metáforas que associam a política ao coito ou, como vimos no 8 de janeiro bolsonarista, e já aí não se tratava de uma metáfora, à defecação. A estética bolsonarista, enfim, trata-se de uma sofisticada estratégia comunicacional, que promoveu estímulos à dimensão humana mais impermeável aos argumentos racionais: a dimensão emotiva.

Relegadas pela tradição racionalista ocidental por altamente subjetivas, suscetíveis e predispostas ao melodrama, inimigas portanto do rigor objetivo que o intelecto supostamente demanda, as emoções encontraram na generalização tecnológica do espetáculo a sua desforra. Televisão, WhatsApp, Instagram são espaços privilegiados para o cultivo das emoções, esfera que encontra-se, para Sodré, “no centro da nova sociedade da informação e da comunicação”.

Desde 2013, a extrema-direita provou-se mais consciente do que seus antagonistas de que esse arranjo demanda outras abordagens por parte de quem pretende manter-se na vanguarda das disputas políticas. Improváveis peritos nas estratégias sensíveis de que fala Sodré souberam reciclar, neste “mundo especializado do estético, todas as velhas e gastas imagens, guardadas nos arquivos óticos” da autoproclamada brasilidade tradicional.

Fiquemos em dois exemplos: as pornochanchadas e os programas de auditório dos anos 1990.

Desdobramento “adulto” das chanchadas dos anos 1940, a pornochanchada seduziu milhões de brasileiros às salas de cinemas entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1980. Ela buscava divertir a audiência já nos títulos dos filmes: Banana mecânica (1974), Nos tempos da vaselina (1979), Quando abunda não falta (1984) e O beijo da mulher piranha (1986), entre outros exemplos risíveis.

Em suas histórias macarrônicas, despreocupadas em estabelecer um sentido geral dos fatos, o herói costuma ser um homem desobediente a tudo que é regra e que, pela sua insistente inconveniência regada à machismo, acaba por atingir seus objetivos, resumidos sempre em “comer gente”, como já disse Jair. Já as marcas físicas das personagens – estrabismo, uma perna manca, um nariz desarmônico, seios desproporcionais – são tomados como elementos caricaturais dignos de eterno deboche.

O grotesco fez escola também na TV aberta. Não há brasileiro que não tenha convivido, nas tardes de domingo, com as dançarinas seminuas e os jogos de cunho erótico ao estilo “banheira do Gugu”, seguidos da exposição da “vida comum” das celebridades, apresentações musicais com indisfarçado uso de playbacks, shows de calouros nos quais os desprovidos de talento eram humilhados e, sem acusar contradições, com os padres-pop como Marcelo Rossi e bandas gospel como Diante do Trono. Se houve uma “geleia geral” em que vários elementos grotescos se ajuntaram, foram os programas de auditório: o próprio Bolsonaro projetou-se no “Superpop”, que o emprestou valiosos minutos para a sua defesa da pena de morte, da posse de armas, da homofobia, do machismo e de outros atributos que classificava como “tradições da família cristã”.

Tão eficiente na disputa por audiência, o grotesco seria útil também na luta por votos. De Collor à bancada da bala, “o apelo latente à animalidade – presente na invocação da força corporal – para resolver problemas como inflação e corrupção” passou a dar o norte das campanhas, acompanhada da “exibição brega de façanhas esportivas e querelas familiares” que concorrem para o que Sodré e Paiva chamam de “grotesco atuado”.

“Na noção de gosto”, explicam Sodré e Paiva, “operam motivações estéticas, morais e sensoriais.” De um lado, a agressividade “autêntica” de Jair, a maneira com que ele emula a indignação do “povo”, o planejado desleixo de suas aparições públicas, sua branquitude paulista; do outro, a convicção (sem provas) na sem-vergonhice de um velhaco, o nordestino ex-proletário de “nove dedos”, como o tratam aqueles que o detestam: tudo nessas representações transpira significados. Mas, mesmo tosca, e por isso de fácil compreensão, o enredo grotesco logrou emplacar a sua “narrativa”, e sua missão estava assim cumprida.

Porém, uma vez estabelecido nas instituições políticas, o caos e a dissociação promovidas pelo grotesco tendem a ali permanecer, e saneá-las há de tomar muito tempo. Pois toda a “dissonância” a que se prestam tais representações “não se resolve em nenhuma conciliação”, tornam a avisar Sodré e Paiva: dos espetáculos proporcionados pelo grotesco “decorrem o espanto e o riso, senão o horror e o nojo”, e nada mais.

Leandro Aguiar é jornalista e mestre em Comunicação na Universidade Federal Fluminense.


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