E continua a cruzada de Weintraub contra a educação superior
No teatro do ministro Weintraub, o problema do Brasil são os professores e os pesquisadores (Arte Revista CULT)
Em retórica, há uma regra de ouro segundo a qual “não existe auditório universal”. Significa que, portanto, o bom orador deve planejar o seu discurso prevendo os efeitos que exerceria sobre um público determinado, consideradas as suas características específicas. O orador que não conhece o seu público, suas esperanças e temores, suas expectativas futuras e angústias presentes, se está triste ou animado, o nível de conhecimento sobre o tema do discurso e até mesmo as fantasias e representações compartilhadas, raramente terá sucesso. Em política, a mesma regra vale, mudando o que deve ser mudado. Por isso, cada vez que um indivíduo ou uma instituição da política diz ou faz alguma coisa, é sempre interessante se perguntar “para quem este sujeito está falando? ” e “que efeitos ele quer causar em que público com essas ações e esse comportamento?”.
Esta semana, de novo, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, foi um dos protagonistas do Grande Teatro Público do governo Bolsonaro. Depois de terminar a semana passada anunciando que bloquearia linearmente 1/3 do orçamento de todas as universidades e institutos federais de ensino, o ministro continuou o serviço iniciado mandando cortar indiscriminadamente as bolsas de pesquisa já asseguradas e previstas no planejamento financeiro da CAPES, a agência federal que financia e avalia os cursos de mestrado e doutorado no país. Trata-se de bolsas que ainda não estavam sendo pagas, mas que já estavam reservadas e autorizadas para o uso no curso do ano pelos programas de pós-graduação, pelas pró-reitorias de pesquisa e pelos Institutos Nacionais de Ciência & Tecnologia. Assim, um projeto de pesquisa, por exemplo, para o qual estavam autorizadas cinco quotas de bolsas para contratar jovens doutores, depois de um longo processo de seleção descobre que a bolsa não pode mais ser implementada. E assim um projeto de pesquisa de epidemiologia, energia e ambiente, AIDS, zootecnia ou câncer, já aprovado e com os pesquisadores selecionados, não vai poder ser executado porque Weintraub trata a formação de mestres e doutores e a ciência nacional como se fosse uma padaria ou o armazém da esquina.
Bem, a coisa é muito grave e ganha proporções dramáticas. A CAPES e o CNPq, para quem não sabe, são a joia da coroa do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Cresceram no seu orçamento e na sua importância até mesmo durante o regime militar, pois, apesar de tudo, os militares daquele período tinham uma visão estratégica nacionalista de longo prazo para o desenvolvimento do país. Aparentemente, o governo Bolsonaro imita o regime militar em aspectos como o volume de quadros das Forças Armadas atuando no governo, ou no apelo retórico ao militarismo como forma superior de vida pública, mas lhe escapa o essencial sobre uma visão estratégica nacional, qualquer que seja o teor desta. O alcance que Bolsonaro consegue prever é o que irá pensar de tal Medida Provisória ou de tal declaração o pastor evangélico conservador que lhe garante apoio na periferia de São Paulo, ou o ruralista de alguma fronteira agrícola no Centro-Oeste ou os frequentadores do grupo de boccia do Clube Militar do interior do Rio Grande do Sul.
O que importam são os bolsonaristas convertidos, que, usando o antipetismo como cavalo de Troia, entregaram-lhe surpreendentemente a presidência do país. Não lhe incomoda que um dos patrimônios mais valiosos do país, a sua rede de universidades federais, algo que não encontra termo comparação com nenhuma outra nação em desenvolvimento no mundo, possa se tornar inviável no segundo semestre em virtude um corte de quase 100% do custeio previsto. Nem se constitui para ele um problema cortar bolsas para a formação dos doutores de que tanto o Brasil necessita para a sua autonomia científica, nem tornar impossível a realização de um sem número de pesquisa de que o país urgentemente precisa.
Podemos imaginar, benevolamente, que se trata na verdade de uma decorrência da crise fiscal e que o governo simplesmente não tem mais caixa, sequer para preservar Educação e Ciência, coisa que mesmo os piores e mais austeros governos do país sempre procuraram poupar. Neste caso, então, pelo menos em um mundo político adulto, o governo e o seu ministro da Educação viriam a público e diriam “o caixa do governo quebrou de fato, estamos em estado de emergência, lamentos imensamente, mas todos têm que fazer um sacrifício, estamos tomando as providências para resolver isso o mais rapidamente possível”. No mundo do bolsonarismo e na cabeça de Weintraub, não. Primeiro é preciso fazer um teatro em que o ministro declara, histriônico, que vai punir algumas universidades lhes cortando o custeio e usando para isso um critério moralista: quem não teve gente nua nem MST no campus continua com o mesmo orçamento. No segundo ato, vem o ministro a público declarar que, na verdade, as universidades federais são improdutivas e não são competitivas internacionalmente. Haverá cortes para todo mundo. Desmentido o argumento, parte o pródigo ministro para o terceiro ato, declarando agora que a ciência brasileira é irrelevante e de baixa qualidade: vai cortar também bolsas “ociosas”. Com o argumento novamente moralizado, resulta, então que, afinal, o ministro da Educação de Bolsonaro simplesmente está em campanha contra um inimigo jurado de morte: professores e alunos das universidades federais, de um lado, intelectuais e cientistas nacionais, de outro.
Não há precedentes na história no Brasil. Nem durante as duas ditaduras que sofremos no século passado. Os militares mandaram prender, demitir e censurar professores e alunos, o que é horrível, mas ao menos temos que conceder-lhes que nunca construíram uma retórica contra a Academia e a Ciência. Bolsonaro, de fato, inaugura uma nova era, baseada na convicção de que o problema que afasta o Brasil do desenvolvimento não é a ignorância, como se soe imaginar, nem mesmo é o número insuficiente de profissionais com nível superior no país, nem, por fim, a ainda baixa proporção de doutores por cem mil habitantes, que nos distancia dos países desenvolvidos. No teatrinho do ministro Weintraub, inversamente, o problema do Brasil são os professores e os pesquisadores das Instituições Federais de Ensino Superior. Então, pau neles.
Mas, por que isso? A hipótese mais provável é que Bolsonaro e Weintraub não reconhecem a totalidade da Nação como interlocutor, como auditório. A sua audiência são suas redes de apoiadores do bolsonarismo nas mídias digitais, sejam os grupos alimentados por Carlos Bolsonaro no WhatsApp, sejam os milhões de seguidores dos influenciadores digitais do bolsonaristas no Twitter.
Na semana passada, indagado sobre a razão para a punição das universidades por meio do bloqueio do orçamento, Weintraub expressou candidamente a sua justificativa: há nudez no campus. Com tantos problemas sérios no país, essa fixação na nudez e no sexo parece sem sentido ou propósito para mim ou para você. É infantil e regressivo. Mas não é conosco que ele está falando. Nos grupos e WhatsApp e no submundo bolsonarista no Twitter há mais de duas semanas circulam incessantemente fotos e vídeos de coletivos de pessoas nuas, fazendo performances ou manifestações. Todas elas atribuídas nominalmente às várias universidades federais brasileiras, devidamente rotuladas. Várias dessas fotos tiveram a sua atribuição a instituições brasileiras desmentidas por agências de checagem de fatos, mas que importa? O importante é que chegaram a Weintraub e ao círculo bolsonarista mais íntimo, pedindo providências, higienização, o fim da safadeza e da esculhambação. Para essa gente, professores, estudantes, cientistas e intelectuais são membros de uma seita ocultista que vendeu a alma ao comunismo enquanto entregava os seus corpos à nudez, às drogas e a orgias secretas, protegidos do olhar dos puros pelos imensos e inexpugnáveis muros dos campi universitários. Não resta qualquer dúvida: Bolsonaro governa apenas para o bolsonarista do WhatsApp e Weintraub é o ministro da ignorância.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)