A dimensão ética de Simone de Beauvoir

A dimensão ética de Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir em seu estúdio no bairro de Monte Parnaso, em Paris, 1986 (Foto Bettina Flitner / National Museum of Women in the Arts)

 

Quando nos referimos a Simone de Beauvoir, a primeira imagem que nos vem à mente é, certamente, a da feminista, da mulher escritora e militante cuja principal obra, O segundo sexo (1949), exerceu e exerce ainda grande impacto na vida de muitas mulheres, nos movimentos e militância feminista, e é referência fundamental para a discussão teórica sobre o feminismo a partir de meados do século 20. Como escritora, a maior parte de sua produção foi de obras literárias (romances, memórias, produção epistolar), algumas delas premiadas, como Os mandarins (1954), livro pelo qual ela recebeu o prestigiado prêmio francês de literatura, o Goncourt, de 1954.  Na medida em que era filósofa, romancista, ensaísta, memorialista, ela foi também uma figura de ação, engajada nas causas mais progressistas de seu tempo. Por meio de seus escritos, ensaios, romances, biografia, cartas e diários, os quais expõem inclusive suas experiências mais íntimas, seus relacionamentos e seu modo de viver, entre outras coisas sua própria sexualidade, Beauvoir coloca também a questão da mulher, do gênero e da existência sexuada no centro de uma discussão que é de ordem política, mas também filosófica, e que se liga mais fundamentalmente ao problema da existência, tal como posto em um momento histórico muito particular na França do século 20, o existencialismo.

O modo como se integram à vida intelectual, à vida pessoal e pública de Simone de Beauvoir, ou isso que chamo aqui de dimensão ética de sua existência, é determinante, a meu ver, para que se possa estimar o real alcance do seu pensamento e da contribuição de sua vida e obra para a vida e a história do pensamento no século 20. Inversamente, a supressão ou o desconhecimento desse contexto histórico e filosófico do pensamento beauvoiriano talvez seja um dos principais motivos que levam, muitas vezes, a equívocos e enganos, inclusive de ordem interpretativa, acerca de sua obra. Entender, assim, o que seja o existencialismo de Simone de Beauvoir pode ser também um dos primeiros e mais decisivos passos voltados à apreensão do sentido mais propriamente engajado e libertário de sua obra e de seu legado feminista.

Simone de Beauvoir foi expoente de uma geração de pensadoras e pensadores, autoras e autores, artistas, cientistas, que não passaram incólumes pelas experiências de violência – o impacto da guerra principalmente -, mas também de resistência, de seu tempo; que não se mantiveram alheios ao chamado à ação e que, em grande parte, tiveram consciência do papel exercido pelas suas vidas públicas no âmbito político, assim como no da cultura e do conhecimento; e que, por fim, não deixaram de se posicionar por meio da ação concreta em relação à realidade que os afetava e em meio à qual existiam. Mesmo antes de se declarar feminista – algo que se deu por volta do início dos anos 1970, a partir dos movimentos de maio de 1968, na França, e que a levou, por sua notoriedade e prestígio, a serviço das principais causas encampadas pelas feministas da chamada “segunda onda” -, bem antes disso, ou seja, desde os anos 1940, no pós-guerra, com a revista Les temps modernes, da qual foi cofundadora, Beauvoir já mostra ser grande figura de seu tempo, aquela que conjugava em sua pessoa tanto a mulher de pensamento quanto a mulher-ação. E o que principalmente dirige a conduta a um só tempo intelectual e política de Simone de Beauvoir é essa orientação existencialista, da qual destacaremos aqui duas de suas dimensões, filosófica e ética.

Simone de Beauvoir em foto de documento, em 1939, ano anterior à ocupação da França pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial
Em foto de documento, em 1939, ano anterior à ocupação da França pelos nazistas (Reprodução)

Da perspectiva da filosofia ou, mais precisamente, o existencialismo constitui-se a partir de uma constatação em princípio muito simples, a de que existimos no mundo: existimos nós – indivíduos, sujeitos, consciências -, existe o mundo, e existe a nossa relação com as coisas e com outros indivíduos, sujeitos, consciências. O que torna essa constatação um problema filosófico mais especificamente é o modo de se posicionar em relação a ela, a saber, abrindo mão de buscar um fundamento para essa existência que se encontre para fora dela mesma, seja de natureza metafísica (a revelação de um sentido da vida, a causa primeira ou o fim último para a existência), seja de cunho positivista (a determinação de uma natureza humana, por exemplo). Como se sabe, renunciar ao porquê da existência não é o mesmo que renunciar ao fato de que as coisas existem, os outros indivíduos existem e nós junto com elas e eles. Mais que isto, reconhecer essa existência como um fato, a facticidade da existência, implica também, e inevitavelmente, que nos pronunciemos sobre ela, que nos posicionemos em relação a ela, no sentido de nos decidirmos quanto ao que queremos e podemos fazer dessa existência. Em Por uma moral da ambiguidade (1947), Beauvoir assegura: “é a existência humana que faz surgir no mundo os valores a partir dos quais ela poderá julgar os empreendimentos nos quais se engajará”, pois “não se trata [para um indivíduo] de se perguntar se sua presença no mundo é útil, se a vida vale a pena ser vivida – aí estão questões desprovidas de sentido -, trata-se de saber se ele quer viver e em que condições.” Não se trata, portanto, para existencialistas como Simone de Beauvoir, de criticar apenas um antigo problema, por exemplo, o problema do fundamento, da metafísica, de tudo o que, bem ou mal, permaneceria ligado ao que recusam, mas trata-se, antes, de recolocar também esse problema da existência em todos os domínios da experiência humana.

Em 1972, em protesto em Bobigny, contra o julgamento de garota menor de idade que fez um aborto com a ajuda de sua mãe
Em 1972, em protesto em Bobigny, contra o julgamento de garota menor de idade que fez um aborto com a ajuda de sua mãe (Reprodução)

É esse problema que impele aquele e aquela que o colocam não apenas a se pronunciar, mas também a constituir esse campo de valores – campo ético, portanto, mas não normativo -, no qual o pensamento e a ação deverão se realizar. Essa é a questão que entendo que esteja na base, que seja a pedra de toque de toda a produção de Simone de Beauvoir, de suas obras literárias, memórias, ensaios teóricos, incluindo O segundo sexo, que talvez possa ser considerado sua obra mais conceitual. A autenticidade e a liberdade – os valores que nossa autora tomará do existencialismo – formarão esse pano de fundo ético sobre o qual se erguerá todo o seu trabalho.

Em O segundo sexo também se reconhece uma facticidade, todo o trabalho parte também de uma constatação: ser mulher, nesse mundo governado majoritariamente por homens, para homens e em função de seus próprios interesses, é ser, antes de tudo, segundo sexo. Ou seja, enquanto indivíduo do sexo feminino, significa existir como ser relativo, como Outro em relação ao Um, o indivíduo do sexo masculino, e sem reciprocidade. Beauvoir introduz, desse modo, a questão do gênero, da existência sexuada, e reformula a questão nuclear da existência para o existencialismo, recolocando-a, então, de uma nova perspectiva: uma perspectiva feminista em que ela, mulher, passa a ocupar o lugar não mais de simples objeto de investigação ou de um discurso, mas de sujeito autêntico e legítimo do conhecimento.

Em termos propriamente beauvoirianos, toda a empreitada de O segundo sexo se organiza em torno do seguinte questionamento: afinal, no que consiste, para um indivíduo do sexo feminino, existir nesse mundo? Como nós, mulheres, nos tornamos segundo sexo? Como isso se torna possível? Por que meios? De que maneira? Essas perguntas a levarão a proceder ao reconhecimento e à descrição das condições dessa existência agora já bem delineada (o que ela fará, na verdade, no segundo volume de O segundo  sexo, intitulado, justamente, “A experiência vivida”), mas não sem antes passar em revista certos discursos e saberes – voltados ao conhecimento da vida biológica, psíquica e material -, a fim de comprovar que nada há neles que possa fundamentar e mesmo explicar essa existência da mulher como outro absoluto, relativo, como sujeito objetificado, como, enfim, segundo sexo. Junto dessa crítica, feita sobretudo no primeiro volume de O segundo sexo (intitulado, justamente, “Fatos e mitos”), Beauvoir mostrará a impropriedade – ou a má-fé – da pergunta que até então podia ser ponto de partida de muitas das investigações empreendidas sobre o ser mulher e que pretendem ser objetivas, a saber: “o que é uma mulher?” Esta pergunta como ponto de partida será definitivamente recusada e subvertida em O segundo sexo, pois o que quer que se diga sobre ser mulher, concluirá ali nossa filósofa, nunca poderá ser respondido desse modo pretensamente absoluto, isto é, ignorando algo essencial relacionado à existência própria de uma mulher (e de todo e qualquer indivíduo humano, no mais): o contexto específico em que esta se dá, ou, mais precisamente, a sua situação.

A conclusão a que se chega ao final desse percurso – a saber, a de que “não se nasce mulher” – é a conclusão de que ser mulher não é destino, não é determinação de uma suposta natureza ou desígnio inumano inelutável, mas, antes, uma construção complexa de sistemas de poder enraizada na própria vida social que visa a restringir (em algumas situações mais, outras menos, em todo caso, sempre restringe) especialmente o campo de possibilidades específicas no qual a mulher deveria poder se constituir autonomamente como indivíduo livre, ativo e desejante. Assim, e se a perspectiva é, em contrapartida, como o é para Beauvoir, a de constituição de um campo de possibilidades de libertação em relação a esse estado de sujeição, um passo decisivo a ser dado nesse sentido será o de se proceder ao reconhecimento e à descrição dessas situações, as quais, de resto, se mostrarão cada vez mais tão singulares quanto diversas.

Em Beauvoir, esse trabalho de reconhecimento e de descrição de muitas das situações em que nós mulheres até hoje nos encontramos e que, da maneira como se apresentam, se configuram como situações de opressão – isto é, situações que impedem que possamos exercer de fato nossa liberdade, que possamos existir como indivíduos autônomos e livres -, não se esgota, evidentemente, nas páginas de O segundo sexo. Podemos considerar que toda a obra de Simone de Beauvoir, desde seu romance de estreia, A convidada (1943), até suas obras ensaísticas mais tardias e de maior fôlego, como A velhice (1970), passando por suas memórias, correspondências, sua vida pública, seu modo de se posicionar e agir no mundo, isto é, politicamente, tudo isso, pode-se dizer, é dedicado à tarefa de descrever e desvelar essa trama em meio à qual, sobretudo na vida de uma mulher, se entrelaçam os dois principais tensores da existência: sua liberdade e sua facticidade. Este nos parece ser um dos maiores legados deixados por essa grande mulher pensadora feminista que foi Simone de Beauvoir para todas nós, mulheres, e para aquelas e aqueles que desejam e se empenham para que a vida de todas e todos se realize em meio a uma sociedade mais igualitária, combativa em relação às tão diversas formas de opressão – de classe, de raça, de gênero -, e de indivíduos mais conscientes também de suas responsabilidades quanto à sua própria liberdade, pois que: “a existência do outro, na medida em que é liberdade, define minha situação e é ela mesma a condição da minha própria liberdade”.


IZILDA JOHANSON é doutora em Filosofia pela USP e professora adjunta do curso e do programa de pós-graduação de Filosofia da Unifesp.


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