A força do rascunho contra a alta política

A força do rascunho contra a alta política

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Preâmbulo

Outubro. Éramos testemunhas do início de mais um capítulo tenebroso da história. Ao ataque do Hamas, no dia 7, seguiram-se respostas desproporcionais do governo de Benjamin Netanyahu. Imagens atrozes de extermínio de palestinos, sobretudo crianças, ainda perturbam de modo inconsolável. Bombas, tiros, destroços. Corpos. Sangue. Gaza em chamas. Assolada pelo horror, quase perdi as palavras. Lancei as que ainda dispunha na minha coluna da Cult. Algumas reações sinalizaram decepção: economizar palavras de análise e denúncia diante do que estava acontecendo?

Embora o prisma imanente aos acontecimentos seja essencial tanto para iluminar o que está em curso, como para resistir à monstruosa violência, caminharei por outras duas regiões subjacentes ao cenário tenebroso:

  1. A política feita pelas mulheres em contraposição à alta política;
  2. A força do rascunho como forma política e estético-filosófica.

Ou seja, a direção é a mesma do outro artigo. Direção que vacila, salta de maneira não linear por diferentes quadros, reúne termos aparentemente inconciliáveis. Curso diretivo que opera um giro de 180 graus em perspectivas analíticas dedicadas à situação atual, cujo foco são os próprios meandros históricos e recentes do conflito Israel-Palestina. Certamente a teimosia renderá novas críticas. Mas não são estas também a permitirem a construção de outro mundo?

A alta política e a política relegada às sombras

São tidos como naturalmente pertencentes à alta política temas como a guerra, a política concernente às disputas partidárias e às questões de Estado, bem como a diplomacia entre nações. De outro lado, são lidas quase como extra-políticas questões relacionadas ao cuidado com as vidas, à manutenção das bases sociais, ao trabalho reprodutivo e à preocupação com a qualidade afetiva dos laços.

Ou seja, as bordas que estabelecem o que é ou não alta política assentam-se sobre uma distinção subjacente de gênero, sendo o maior peso público e a manutenção de poder dependentes da exclusão de questões normalmente relacionadas ao feminino. O gênero masculino, por sua vez, aparece atrelado a uma concepção tácita do que seria próprio ao poder da alta política.

Legitimar a “organização” política pela guerra, por exemplo, e sacrificar vidas de jovens para proteger o Estado, assumiu diferentes formas ligadas à valorização da virilidade. Pela lógica corrente, que rege também tal política de guerra, estaria em jogo a necessidade de defender as mulheres e suas crianças – notem de quem é a responsabilidade relacionada a estas –, assim como o dever de que os filhos jovens sirvam aos seus dirigentes e aos representantes da potência nacional – depois de terem sido criados, sobretudo por mulheres, os filhos correm o risco de se prestarem à devastação física e psicológica ou à morte.

Embora diferentes campos dessa estrutura possam ser eventualmente ocupados por corpos de mulheres, ainda persiste o lugar simbólico masculino nas posições existentes nas esferas de poder. Por isso, reivindicar poder político implicará quase invariavelmente inserir-se no núcleo de referências masculinas, que assume uma espécie de ordem natural ou divina e aparenta ser algo fixo e seguro, distante de qualquer espécie de construção histórica.

Nota-se como a própria oposição binária, bem como as relações sociais marcadas pelo gênero, são imanentes ao que se entende por poder e alta política. Daí que reescrever a história das mulheres implique colocar em xeque a configuração do sistema como um todo. Se a exclusão das mulheres é a própria base de sustentação dessa estrutura, como transformá-la a partir de um prisma que seja feminista?

Joan Scott (1995), em Gênero: uma categoria útil de análise histórica, ressalta que os processos políticos definirão os termos de poder, pois as categorias “homem” e “mulher” são vazias – não são definitivas ou transcendentes – e, ao mesmo tempo, transbordam seus limites na medida em que, embora pareçam encerradas em si mesmas, trazem em seu bojo também linhas de fuga alternativas que se mantinham negadas ou reprimidas.

Com efeito, não é de hoje que feministas notam como investigar histórias de mulheres não apenas acresce aos velhos temas novas esferas de atenção, mas demanda sobretudo a reavaliação e a redefinição de premissas e critérios de nossos olhares. Tal rearticulação tampouco afeta a experiência subjetiva de modo exclusivo. Ela remodela atividades públicas e políticas. Ou seja, não se trata simplesmente de estar às voltas com uma história complementar que diz respeito às mulheres. O que está em jogo é antes reescrever a história (ou as histórias) ao seguir outros caminhos investigativos. Neles, ao gênero como categoria de análise associar-se-iam outras duas: a de classe e a de raça.

Ainda é frágil o registro simbólico de histórias das mulheres ou de sua participação no próprio eixo de transformações políticas da civilização ocidental. Quando reconhecidas, tais histórias foram lidas de maneira apartada de uma composição central da narrativa sobre os processos civilizatórios e políticos.

Como diz ainda Joan Scott (1995), esse domínio separado se expressa em raciocínios como: “as mulheres têm uma história separada da dos homens, portanto deixemos as feministas fazerem a história das mulheres, que não nos concerne necessariamente” ou “a história das mulheres trata do sexo e da família e deveria ser feita separadamente da história política e econômica”.

Por isso, a reconfiguração simbólica da história humana deve exigir uma análise não só da relação intrínseca entre as experiências masculinas e femininas no passado, mas ainda uma releitura capaz de rearticular tal passado às práticas históricas do presente. Trata-se de observar como as relações de gênero operam nas dinâmicas sociais e analisar a forma como as narrativas são costuradas na percepção e na memória que organizam o conhecimento histórico.

Vemos, então, que gênero e poder estão nas dinâmicas que hierarquizam a organização social e a própria noção de igualdade, tomando como naturais as subdivisões dos atributos masculinos e femininos.

É certo que a história política se desdobra sobre o território de gênero. Pode-se notar como as próprias leis abstratas e o poder do Estado frequentemente legitimam-se ao colocar “a mulher” como o Outro submerso. Desestabilizar esse solo significa considerar a construção da binaridade como uma problemática que deve ser insistentemente incorporada a todo e qualquer debate político estrutural.

O poder do rascunho como gênero filosófico

Por ocasião do Colóquio Olgária Matos, ocorrido entre os dias 8 e 9 de novembro, Marilena Chaui reconstituiu um breve e atípico intervalo histórico do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. Eram os anos de chumbo. Na época, Miguel Reale tornou-se reitor (1969-1973). No mesmo período, Gilda de Mello e Souza assumiu a direção do Departamento de Filosofia (1969-1972). À brutalidade dos militares no poder seguiu-se a resistência política ou armada em busca de democracia. Na arena da alta política e da lógica de guerra com o exército no poder, o protagonismo da disputa favorável ou contra o sistema militar em vigor era predominantemente masculino. Do lado da resistência ao regime opressor, muitos professores do Departamento de Filosofia viram-se obrigados ao exílio. Outros foram cassados.

Pela primeira e única vez, as professoras passaram a compor a maioria do Departamento (Gilda de Mello e Souza, Maria Sylvia Carvalho Franco, Marilena Chaui, Otília Arantes, Lygia Araújo Watanabe, Scarlett Marton). Coube a elas outra tarefa política naquele período: “à maneira grega”, destacou Marilena no evento dedicado à Olgária, “as mulheres garantiram a existência do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP”, acrescentando de modo conclusivo: “É isso o que as mulheres fazem: não apenas produzem vidas, mas as mantêm”.

Até a época da ditadura militar, detalhou em sua narrativa na ocasião, não havia uma ordem que estabelecesse o que deveria ser a universidade e como ela deveria funcionar. Tampouco havia algo que estipulasse o que era necessário em termos de titulação para a existência de um departamento na universidade.

No Departamento de Filosofia, entre doutores e livre-docentes, havia José Arthur Giannotti, Bento Prado Junior, Oswaldo Porchat, Rubens Torres Filho (talvez outros) que não estavam presentes. Gilda de Mello e Souza e Maria Sylvia Carvalho Franco, também doutoras, estavam presentes. Marilena Chaui dispunha da titulação de mestre.

Nesse cenário, Miguel Reale convocou “Dona Gilda” para dizer-lhe: “A senhora sabe, sou ‘o mais progressista dos fascistas’ (risos). Então, não quero promover nenhuma violência aqui. Mas vou ser obrigado a fazer uma intervenção no Departamento de Filosofia com o risco de ter de fechá-lo porque ele precisaria contar com os seguintes números de professores: x livre-docentes, x doutores, x mestres. Vocês não possuem nada disso”.

Diante do aviso, “Dona Gilda” pediu um pouco de calma e paciência, dizendo que resolveria o problema. Em seguida, marcou uma reunião. Logo determinou: “Maria Sylvia, você terá que fazer uma livre-docência em breve; Marilena, você terá que fazer seu doutorado em breve”. E assim sucessivamente.

As tarefas foram distribuídas para cada uma das professoras que estavam no Departamento e todas fizeram, a toque de caixa, o que era necessário diante da tensa ameaça. Como justifica Marilena, essa é a razão pela qual nenhuma delas publicou suas pesquisas. Os resultados importantes não estavam incorporados nas letras dos textos, mas na ação política de garantir a existência, “aos trancos e barrancos”, daquela parte da universidade. Os textos foram escondidos porque essas mulheres, que salvaram a existência do departamento, sentiram vergonha de seus escritos filosóficos, tal como puderam ser feitos naquela circunstância adversa.

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Tomo como base, porém, outra apresentação feita no mesmo Colóquio Olgária Matos: a de Sergio Cardoso. Com ela, pergunto-me se, lidos hoje, tais escritos convulsivos, redigidos pelas pensadoras no calor da hora, não preservaram a adrenalina da luta em nome da vida e do pensamento filosófico. Imbuídos dessa substância, é bem possível que esses textos retenham belezas inspiradoras para a luta destinada à política que ainda cabe às mulheres.

Entre várias de suas lembranças ali expostas, Marilena destaca que, além da precipitação da pesquisa em favor da sobrevivência da Filosofia na USP, a tessitura de sua tese exigia um constante desvio de olhos para a janela. O objetivo do olhar era o de se certificar sobre a ausência de militares nas redondezas da FFLCH-USP. Momentaneamente livre deles, seguia com sua pesquisa. O medo, ingrediente recorrente, era de que aparecessem subitamente para repreender violentamente tanto estudantes como professores.

Meu interesse e minha curiosidade em relação a tais teses apressadas e tensas ganham respaldo nas análises feitas por Olgária Matos sobre maio de 1968. É Sergio Cardoso quem as recupera. Segundo ele, Olgária absorvia os meandros do movimento estudantil em seu caráter pulsional. Tratava-se, para ela, de traçar contornos políticos sem hierarquias, sem disciplina imposta por dirigentes, visando a autogestão e a democracia direta. Revolta política, moral e instintiva, sendo o último termo, nota Sergio Cardoso, um acréscimo feito por ela em relação às demais análises que descreviam o período em ebulição.

O instinto, comumente atrelado ao lado mais animal e menos sofisticado do humano, assume aqui uma força de resistência contra a brutalidade, a crueldade e a feiura. Montadas em um gesto instintivo, as barricadas assumiam, naquela atmosfera, a melhor forma de revolta contra a sociedade produtivista e os valores meramente consumistas que ela engendra. Uma revolta que assumia ares de revolução contra a alienação do trabalho e em nome do desejo – reivindicações políticas feitas pela força de Eros.

Ora, aqui há outro atalho para que voltemos aos relatos de Marilena Chaui: as próprias páginas redigidas no ímpeto de salvar a filosofia das garras de um poder destrutivo e autoritário não teriam absorvido também uma força vital instintiva? Não seriam esses textos também espécies de barricadas do desejo construídas na luta pela vida filosófica, ameaçada e levada ao limite mais frágil de sua existência? Deixo lançadas ao ar essas questões, já que não tive, ainda, acesso a tais trabalhos para respondê-las.

Mas voltemos à Olgária na versão de Sergio Cardoso. Ele destaca a liberdade intelectual e o viés antiautoritário do pensamento da filósofa uspiana-unifespiana. Já após os eventos dos anos de chumbo, ela invariavelmente encontrava “brechas” no ambiente mais rígido e pesado do curso de Filosofia, cujas “competições e rivalidades” ou “choques e traumas” oprimiam muitos dos que o frequentavam.

No primeiro curso dado por Olgária Matos com Marilena Chaui, lia-se Montaigne e Platão. A admiração de Olgária por Montaigne, a respeito do qual falava com notável maestria, se voltava ao que o filósofo podia ensinar sobre “o que fazer e o que evitar” na redação de textos. Nas palavras de Sergio Cardoso:

Olgária encontrava na disparidade de títulos, dos ensaios, nos fragmentos, nas glosas de si mesmo e nos comentários à margem, uma escrita sempre prematura, prometida e adiada de alguma forma. Ensaios, fragmentos, citações, estabeleciam o rascunho como gênero filosófico e não só literário.

Talvez seja possível dizer que se tratava de um interesse por um gênero filosófico que também preservasse algo de instintivo, tateando letras em seu caráter impreciso, vacilante e vulnerável. Modelo de antissistema e do inacabamento como forma, no qual a indecisão – avessa ao caráter unívoco de determinadas letras – assume um espaço legítimo de reflexão em sua força ainda pulsional.

Com isso, resta a questão: essa potente fragilidade dos rascunhos, dos gestos que lutam pela vida e pelo desejo, que armam de modo instintivo barricadas efetivas e simbólicas contra a destruição, navegando em modelos políticos submersos à alta política e às guerras, não deveria sublevar-se? Não deveria essa política feminina navegar na superfície das palavras, dos atos, das decisões públicas, dos modelos de vida que circulam nas sociedades? Com esses critérios e premissas para circunscrever políticas que realmente preservam as vidas em suas diferentes manifestações, talvez não houvesse Hamas, talvez não houvesse uma Gaza em chamas.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela USP e autora de Breve história da carne (Iluminuras, 2023), entre outros livros e artigos.


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