Os caminhos da liberdade

Os caminhos da liberdade
Simone de Beauvoir com Fidel Castro e Sartre em visita a Cuba, em 1960 (Foto: Reprodução)

 

Década de 1920, estudos de filosofia em Paris. Simone de Beauvoir, de formação católica, preservava relações de amizade com um grupo de estudantes certinhos enquanto dirigia olhares a um estranho e hermético trio, que encontrava por corredores e bibliotecas, composto por Sartre, Paul Nizan e René Maheu – alunos irreverentes, de má reputação. A amizade com Maheu foi a ponte para a futura união com Sartre. Um belo dia, Maheu entregou a Simone um desenho que Sartre lhe dedicara: “Leibniz no banho com as mônadas”. Era um convite para a aproximação. Tempos depois, a jovem, cujo desejo de fuga do lar paterno era premente, entra no enevoado quarto de Sartre para estudar Leibniz com o trio de aspirantes a intelectuais.

Em Memórias de uma moça bem-comportada (1958), narra o ato de aproximação com aquele que seria seu companheiro por mais de 50 anos: “Estava meio assustada quando entrei no quarto de Sartre; havia uma grande confusão de livros e papéis, pontas de cigarro por toda parte, uma espessa fumaça. Sartre recebeu-me mundanamente; fumava cachimbo. Silencioso, com um cigarro no canto de seu sorriso irônico, Nizan espiava-me através dos óculos pesados, com um ar de saber muita coisa.”

Findos os últimos exames, em 1928, Maheu retorna à província da casa paterna. Chega a vez de Sartre, que diz a ela: “A partir de agora, tomo conta de você”. Beauvoir apresenta, no livro memorialístico, suas primeiras impressões a respeito das paixões de Sartre: “Com o romantismo da época e seus 23 anos, sonhava com grandes viagens (…). Não se enraizaria em nenhum lugar, não se embaraçaria com nenhuma posse: não para se conservar vãmente disponível, mas para testemunhar tudo. Todas as suas experiências deveriam ser úteis à sua obra e afastava todas as que pudessem diminuí-la. (…) Sartre sustentava que, quando se tem alguma coisa a dizer, todo desperdício é criminoso. A obra de arte, a obra literária era a seus olhos um fim absoluto; ela trazia em si sua razão de ser e de seu criador, e talvez mesmo – não o dizia, mas eu suspeitava de que estivesse persuadido disso – a do universo inteiro.”

Nessas declarações, encontramos a primeira compreensão de Sartre sobre o ato de escrever, um ato de salvação, ideia que discute em seu romance inaugural A náusea (1938), por meio das reflexões de seu outro-eu: Antoine Roquentin. Enquanto Simone se debatia com o que ainda lhe restava de formação espiritualista, Sartre buscava, por meio da literatura, outra forma de salvação: a sobrevida por meio da existência para o outro, seus leitores. Como reconheceria nas entrevistas que compuseram A cerimônia do adeus (1981) e As palavras (1963), o sentido de sobrevivência literária era para ele uma espécie de decalque da religião cristã. Assim, em seus conflitos íntimos, Simone e Sartre estavam mais próximos do que a aparência de moça bem-comportada e de rapaz iconoclasta poderia deixar transparecer.

Com Sartre e Claude Lanzmann no Egito, 1967 Reproducao
Com Sartre e Claude Lanzmann no Egito, em 1967 (Foto: Reprodução)

A primeira tentativa de viagem aventuresca intentada por Sartre, ainda estudante universitário, foi por meio de uma candidatura a professor de francês, por dois anos, em uma escola de Kyoto, no Japão. Foi preterido em relação a um estudante de línguas. Embora malograda, a possibilidade da viagem gerou o pacto de união com Simone: mesmo espacialmente separados por dois anos, nada poderia pôr fim à união. Nenhum amor paralelo seria superior ao que dedicavam um ao outro. E assim se fez. Embora nunca tenham vivido na mesma casa, embora alguns de seus casos paralelos tenham durado anos – como o de Simone com o escritor norte-americano Nelson Algren e o de Sartre com Dolores Vanetti –, nenhum deles chegou a perturbar a estabilidade da união central. Apenas a morte do companheiro, em 1980, marcaria a ruptura definitiva de uma união de 52 anos, diz ela no prefácio de A cerimônia do adeus (1981): “Você está enclausurado; não sairá daí e eu não me juntarei a você: mesmo que me enterrem ao seu lado, de suas cinzas para meus restos não haverá nenhuma passagem.”

A primeira fronteira cruzada pelo casal foi a espanhola, uma viagem de jovens universitários com poucos recursos, bastante sensata. As posteriores foram assumindo caráter de ampliação de horizontes culturais: descobrem as corridas de touros, a pintura de El Greco, de Tintoretto, a Alhambra, a Acrópole ateniense, as praças romanas, os doces italianos e a capacidade de revelar certo sentido profundo das culturas regionais; os bordéis de Nápoles, onde mulheres imitavam posições eróticas de afrescos da Vila dos Mistérios de Pompeia; o exotismo de paisagens marroquinas, o vivo burburinho de gente em Barcelona. De alguma maneira, cada viagem comportava o aspecto aventuroso das descobertas que era capaz de proporcionar e que se configurava ao ser rememorada.

Com Sartre em Nida, na Lituânia, em 1965 (Antanas Sutkus)
Com Sartre em Nida, na Lituânia, em 1965 (Foto: Antanas Sutkus)

Porém, permanecia uma diferença na concepção de cada um sobre o sentido de viajar: enquanto para Sartre cada lugar só se revelava a partir do repouso contemplativo e reflexivo em praças, restaurantes e quartos de hotéis, quando podia pensar sobre o mistério das coisas vistas e vividas, Simone jamais se esgotava de visitar mais uma igreja, mais um museu, ver mais um monumento. Mas a fruição de um inesperado momento de “aventura” ao dormirem a céu aberto em uma aldeia grega e acordarem rodeados por camponeses podia uni-los intimamente, por exemplo. Experiências que Simone projeta em personagens do romance A convidada (1943) e narra em uma das suas obras biográficas.

Aliás, se Sartre pouco gostava de escrever diretamente sobre si, Simone “salvava” suas “aventuras” ao dar forma literária à vida do casal. Foi ela a biógrafa das experiências conjuntas e, indiretamente, de toda uma geração de intelectuais a viver na rive gauche e se envolver com as questões existenciais e políticas do entreguerras, do pós-Segunda Guerra, dos libertários de 1968. Desde os contatos na universidade até a morte de Sartre, Simone converteu-se, além de companheira de viagens, em leitora crítica e interlocutora indispensável para a produção de toda a obra literária e filosófica do companheiro, enquanto este foi incansável incentivador, conselheiro técnico e temático da também extensa obra de Simone. Difícil mensurar a extensão dessa mútua influência.

A viagem é um traço marcante na vida de constantes descobertas que esse casal de intelectuais faz a respeito de si, a respeito do mundo, a respeito da função da escritura no mundo. A viagem para o campo de batalha, onde Sartre serviu como meteorologista – estada minuciosamente documentada em Diário de uma guerra estranha (1983) –, a viagem para o Stalag de Trier como prisioneiro dos alemães e depois de fuga do campo de prisioneiros para o retorno à Paris ocupada; as viagens que fez de bicicleta com Simone à zona livre do sul da França em busca de apoio de outros escritores, como Gide e Malraux, para as atividades de resistência que marcam a passagem para uma nova compreensão de mundo. Dali emerge a consciência de que todos estão irremediavelmente açambarcados pela situação em que vivem e de que a posição de cada um nela é marcada pela ação. Essa consciência leva Sartre a produzir obras como Os caminhos da liberdade (1945-46) e O existencialismo é um humanismo (1946), e Simone de Beauvoir escreve sua obra-mestra, O segundo sexo (1949).

Em Israel, 1967 (Moshe Milner)
Em Israel, 1967 (Foto: Moshe Milner)

A nova compreensão de mundo marcada pela Segunda Guerra reflete-se numa nova maneira de viajar. É o tempo das viagens políticas, também minuciosamente documentadas por Simone, entre as quais se incluem as estadas na União Soviética, na China, em Cuba e no Brasil, onde permaneceram entre agosto e novembro de 1960. Percorreram as principais capitais brasileiras e parte do interior do país. Sartre fez inúmeras conferências sobre literatura popular, estética e filosofia, tratou de questões políticas com sindicalistas e estudantes, conheceu uma nova amante. A feminista Simone de Beauvoir, por sua vez, falava da condição da mulher a tímidos grupos femininos locais, vigiava os excessos de Sartre e encarregava-se de redigir as memórias das experiências brasileiras, publicadas em Sob o signo da história (1965).

Fazia cumprir, portanto, uma autêntica divisão de trabalho que havia entre ambos. Era próprio da personalidade de Sartre a luta contra o sono, contra o esgotamento físico. Generoso, quando esteve no Brasil, conforme testemunhos de época, nunca se recusava a responder a mais uma pergunta; afeito à vida boêmia, queria sempre ficar mais um pouquinho durante reuniões em que se embriagava de álcool e de palavras, sabendo que devia ir embora. Parecia querer justificar sua partida projetando em Simone sua instância repressora, aceitando que ela a exercesse, pois sabia que necessitava de proteção contra seus próprios impulsos. As viagens, pelas descobertas que podem proporcionar, foram sempre experiências privilegiadas para o conhecimento recíproco de Sartre e Simone, para a produção literária de ambos, assim como para a consciência que adquiriram das injustiças sociais. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA CULT 84


Luís Antônio Romano é doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, professor associado do Instituto de Linguista, Letras e Artes da UNIFESSPA, autor de A passagem de Sartre e Simone de Beauvoir pelo Brasil em 1960 (Mercado de Letras)


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