O pensamento filosófico-feminista de Simone de Beauvoir

O pensamento filosófico-feminista de Simone de Beauvoir
Simone de Beauvoir em 1952 (Foto: Gisele Freund/Divulgação)

 

Desde o final dos anos 1980 verifica-se uma retomada de interesse pelas obras de Simone de Beauvoir, sobretudo no referente às questões filosóficas. Relidos de distintas angulações, como a ética, a política e a corporeidade, por pesquisadoras de várias partes do mundo – como a finlandesa Sara Heinämaa, a argentina M. Luisa Femenías e a brasileira Carla Rodrigues –, os textos de Beauvoir desvelam uma fenomenologia da experiência e da condição das mulheres, em que se efetiva tanto a interlocução entre o Eu e o Outro, a corporeidade e a sexualidade, quanto a desconstrução identitária de um suposto sujeito feminino. O que resulta é uma filosofia feminista bastante atual, presente não apenas na sua mais conhecida obra, O segundo sexo (1949), como também no conjunto dos escritos de ficção e ensaios, nos textos autobiográficas e de memória.

A fenomenologia tradicional, de Edmund Husserl a Merleau-Ponty e Sartre, investiga o corpo vivido sempre enquanto experiências genéricas, no sentido de se identificarem certas estruturas fundamentais, apresentando uma perspectiva dita universal, numa dicção bastante masculina. Assim, a filosofia da primeira metade do século 20 não parece se destacar do pensamento tradicional, já que o sujeito masculino assume a voz da universalidade corpórea e essencial. Nesse contexto é que Simone de Beauvoir rompe com as bases tradicionais de pensar e fazer filosofia ao adotar um ponto de vista feminino do corpo vivido, o que constitui uma autêntica fenomenologia da experiência de mulheres em sua especificidade de gênero, como afirma Sara Heinämaa.

Nos escritos de Beauvoir, o termo que se usa como diferencial de experiências vividas entre mulheres e homens não é gênero, mas sexo. Entretanto, a filosofia feminista dos anos 1970 em diante reconhece as características de gênero que ela utiliza, dando início a duas correntes opostas, a da diferença sexual e a da teoria do gênero. Se a teoria da diferença sexual tem origem europeia e a teoria do gênero procede do ambiente anglo-americano, ambas são devedoras de O segundo sexo em seu entendimento do gênero como uma construção social e cultural. Desse prisma, o feminismo da diferença sexual, com Hélène Cixous, Luce Irigaray e Rosi Braidotti, considera o gênero como um conceito produzido e encerrado na ordem masculina e falogocêntrica da cultura patriarcal ocidental. O gênero é entendido como um produto cultural que se sobrepõe a um sujeito corporal previamente dado, ou seja, o gênero é um suplemento, um significado acrescentado corporeamente. Nesse sentido, o sexo seria um dado não acidental, autêntico, que permanece sem representação, ou seja, se faz representar somente como a falta de inscrição na linguagem e no domínio da ordem simbólica masculina, que impõe a lógica do mesmo, do uno, do ser, em face do outro, o negado, o subordinado: a mulher. O sexo feminino é, assim o outro do Outro, escreve Irigaray, em Speculum de l’autre femme (1974).

No variado espectro da teoria de gênero, pensadoras feministas têm discutido, a partir de Beauvoir, com opções liberais, como as de Kate Millett, com alternativas igualitárias, como as de Betty Friedan, e com elaborações que transcendem a marca do sexo, como em Monique Wittig e Judith Butler. De modo bastante crítico, Butler, especialmente em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (1990), enfatiza as práticas sexuais acima da identidade de gênero ou sexual e separa sexualidades e gênero, de modo a revisar a opressão sobre elas exercida por outros elementos, inclusive o da regulação sexual, questionando as dissonâncias entre identidades de gênero e práticas sexuais.

Nesse debate atual sobre a problematização do gênero, a obra de Simone de Beauvoir permanece como ponto de interlocução e se abre a novas abordagens epistemológicas. Repensar o lugar dos feminismos nos discursos filosóficos atuais é o desafio que leva a novas indagações sobre as possibilidades de identidades generizadas. Se não há como destacar abstratamente “a mulher”, como falar de experiências de mulheres, individuadas e descritas por meio de uma situação de mulher? O que os escritos de Beauvoir realçam é justamente essa dimensão paradoxal constituída pela experiência das mulheres em geral, num mundo registrado pelos homens, autorizado pelos códigos e leis dos homens, abençoado pelas religiões e paradigmas masculinos.

É por Beauvoir saber transitar por uma expressiva variedade de gêneros, como os ensaios, os romances, o jornalismo político e textos autobiográficos, que uma multiplicidade de vozes é trazida para seu projeto filosófico, cabendo salientar que ela sempre se considerou apenas uma escritora. Dizer isso, contudo, não implica que abdique de abordar os vários contornos do mundo, as questões da vida real e os sexismos que perpassam teses e argumentos feministas.

Seu método de trabalhar a realidade é sem dúvida fenomenológico, buscando estar sempre consciente de seu entorno e de suas vivências, mas leva em consideração sua situação cultural e histórica como uma mulher francesa de meados do século 20. A interrogação inaugural de O segundo sexo é “o que é uma mulher?” E o pressuposto de experiência que ela assume é “eu sou uma mulher”. Centrando-se sempre numa moral da ambiguidade, em que se realça o apreço à vida e o questionamento de suas condições de possibilidade, Beauvoir traz para os debates feministas a dimensão fenomenológica de tornar-se mulher. Nesse sentido, ela tanto descreve a situação de “má-fé” enquanto um comportamento feminino que se lança à histeria, narcisismo, abandono e violências, resultando na assunção de um destino de “a mulher” e das mulheres como uma concepção social, quanto se vê ligada ao destino de todas as mulheres enquanto alguém que descreve a realidade, mas se percebe inserida no contexto situacional e contingencial de sua vida.

O segundo sexo, de Simone de Beauvoir
Capas do segundo e primeiro volume da primeira edição francesa de ‘O segundo sexo’ (1949) (Reprodução)

Beauvoir escreve em uma de suas obras de memória, Tout compte fait (Tudo dito e feito, sem tradução no Brasil) (1972): “Aprisionando-a em frases, meu relato faz de minha história uma realidade acabada que ela não é.” Seu projeto de vida se orienta, sobretudo, para o relato da vida, ato no qual sujeito e objeto temático se mesclam em unidades e interrupções; tal como um sujeito que registra o mundo e que nele se insere para experimentá-lo corporalmente enquanto uma mulher que discute igualdade e diferença, subjetividade e alteridade, cultura e suas determinações naturalizantes e assimétricas.

Levando em consideração sua influência nas correntes feministas, seu legado explicita-se como uma tensão dialética entre o singular e o universal, a situação histórica das várias mulheres em suas características de gênero, raça, etnia, classe social, participação política, vivência sexuais e corpóreas e as análises e teses feministas sobre igualdade e diferenças, opressão e alteridade. A partir de O segundo sexo, os feminismos puderam compreender que cada mulher passa por experiências individuais de opressão e de exclusão, a articulação dialética entre o geral e o particular desenhando o quadro valorativo das experiências vividas.

Contudo, como se mostra em O segundo sexo, a questão acerca do “que é uma mulher” e a afirmação de não neutralidade epistemológica diante dessa pergunta levam Beauvoir, nesta obra e nas memórias, a distinguir dois tipos de alteridade: aquela entre os iguais e outra entre os diferentes, entre os quais não há que falar em reciprocidade. É o traço dialógico de suas obras que torna possível à filosofia reconhecer aspectos dos feminismos e problematizá-los sob enfoques sempre renovados. TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA EDIÇÃO 207


MAGDA GUADALUPE DOS SANTOS é doutora em Direito pela UFMG, professora adjunta da UEMG e da PUC MG, co-tradutora e organizadora de Brigitte Bardot e a síndrome de Lolita & outros escritos (Quixote+DO)


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