Gênero e patriarcado: categorias inúteis para compreender a escravidão

Gênero e patriarcado: categorias inúteis para compreender a escravidão

 

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A matéria é de uma importância transcendente. Todos os oradores são concordes em declarar que nenhuma outra mais grave tem ocupado o parlamento brasileiro desde que ele existe.” Assim o senador Antão definia a natureza dos debates em torno da proposição que tinha como objetivo “libertar o útero” das mulheres escravizadas. Era o ano de 1871. Pela primeira vez, se discutia um projeto de lei que visava pôr fim a uma instituição que garantiu, por 371 anos, a reprodução da escravidão no Brasil. Nascer de uma mulher escravizada determinava o destino da criança. Era um princípio romano (partus sequitur ventrem – o parto segue o ventre), segundo o qual mulheres livres trariam ao mundo filhos livres, na condição de “ingênuos”. Mulheres escravizadas reproduziam a prole de escravizados.

Em 1871, parlamentares brasileiros se digladiavam em discursos apocalípticos em torno desse projeto de lei. No entanto, não havia absolutamente nada de novo na proposta. Em quase todas as colônias e ex-colônias espanholas, em diversos estados estadunidenses e canadenses, já se tinha feito a opção pela abolição gradual, controlada e para o futuro. Quase um século antes, em 1773, o Reino de Portugal já havia determinado que não nasceriam mais pessoas escravizadas na metrópole (atenção, eu disse na metrópole. A escravidão só foi abolida nas colônias portuguesas em 1869). Brasil e Cuba foram os últimos países a aprovarem leis que interromperam o princípio do partus sequitur ventrem.

A pesquisa que realizei teve como objetivo analisar os Anais do Parlamento brasileiro da legislatura de 1871. A metodologia que acionei na leitura e na sistematização se baseou na articulação da análise de discurso foucaultiano, nas teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin e nos contrapontos históricos, nos termos de Edward Said, nos estudos transviades (tradução culural que faço para estudos queer). Em linhas gerais, não me circunscrevi à análise dos pronunciamentos. Eu precisei fazer inúmeros contrapontos, como, por exemplo, uma imersão nos estudos sobre as revoltas das pessoas escravizadas para compreender o por quê daqueles parlamentares estarem tomados de um medo profundo sobre os efeitos que essa lei causaria na disciplina de seus planteis (como era nomeado o conjunto de pessoas escravizadas pertencentes a uma senhora ou a um senhor).

Na leitura em contraponto compreendi que, embora nos discursos não houvesse relatos de fatos, os parlamentares tinham razão de terem medo, uma vez que não há um único momento durante todo o período escravocrata em que o clima não tenha sido de guerra racial. A articulação dessas quatro camadas teóricas levou-me a abrir outras perguntas ausentes na fase inicial da pesquisa.

Comecei a observar que ali estavam sendo tecidas características estruturais da cultura política e social do Brasil contemporâneo, a exemplo da autorização social para os pais abandonarem seus filhos e filhas. Essa autorização, ainda que hoje possa ser analisada transversalmente na sociedade brasileira, teve sua gênese na descartabilidade de pessoas durante a escravidão, principalmente de crianças.

Vejamos: qual era o ponto principal do debate? Conferir aos filhos e às filhas de mulheres escravizadas que nascessem após a promulgação da lei a condição de livres: nasceriam ingênuos. Não seriam libertos, definição para se referir aos que nasciam escravizados e que obtinham a alforria. Durante cinco meses, os parlamentares discutiram o futuro da primeira geração de crianças negras brasileiras.

Foram múltiplos os argumentos contrários e a favor da proposição de lei. Há, contudo, pontos de unidade entre os parlamentares. Em primeiro lugar, o consenso sobre o caráter imoral, depravado, promíscuo das pessoas escravizadas. Ao longo dos debates, emerge a construção da figura abjeta do “ser escravo”. É inútil tentar encontrar em suas falas qualquer ponto de reflexividade em que o “eu” entra em contato com a existência das pessoas escravizadas, fundamento da alteridade. O horror estava na possibilidade de ter pessoas da “raça africana” com os mesmos direitos que as pessoas brancas. Não se tratava de um debate sobre políticas públicas para preparar a futura geração de brasileiros e brasileiras.

Como efeito dessa representação das pessoas escravizadas como abjetas, notamos um segundo consenso. Não há, em toda a discussão, uma única menção à figura do pai. Ou seja, é como se as mulheres escravizadas tivessem a capacidade singular de gerar herdeiros biológicos sozinhas. Por outro lado, era-lhes negada a condição da maternidade. O que define a condição materna? O vínculo, a autoridade, a produção de memórias compartilhadas. Esqueça tudo isso: quando falamos de maternidade e paternidade nos movemos no mundo das pessoas livres. Entre a ausência da figura paterna e a negação da maternidade às mulheres escravizadas, encontramos as crianças escravizadas desprovidas de qualquer proteção.

E aqui se instaura alguns problemas teóricos. Por muito tempo, feministas acionaram a suposta unidade biológica entre as mulheres como algo fundamental para a produção da identidade de gênero, o que é falso. As mulheres e os homens escravizados estavam alienados e alienadas da condição de gênero. A aparência de gênero não nos autoriza a dizer que eram homens e mulheres, quando todo o sistema vivia, se nutria e se reproduzia exatamente pela negação da condição humana. Se a entrada no gênero é o primeiro ato de humanização, essa porta estava fechada para as pessoas escravizadas.

Nos defrontamos aqui com um segundo problema teórico. Como é possível falarmos de “patriarcalismo” ou “sistema patriarcal” quando para parte considerável da sociedade a figura paterna não existia? Um patriarcado sem pais? É possível uma ordem simbólica deslocada totalmente da ordem objetiva das relações sociais? Ainda que tenhamos pesquisas que apontem os arranjos familiares entre pessoas escravizadas, não é possível perdermos de vista que esses arranjos só existiam sob a tutela da senhora e do senhor escravocrata. A regra era a impossibilidade da existência de famílias escravizadas nos moldes daquela que inspirou o conceito “patriarcado” e que teve como referente a família cristã europeia.

Patriarcado e gênero não são conceitos úteis para analisar o contexto escravocrata, porque referem-se exclusivamente ao mundo das pessoas nascidas livres. E essa inutilidade tem efeitos nas disputas de gênero contemporâneas, que não terei tempo de desenvolver. Vejamos, por exemplo, a questão da honra (e aqui, aciono outro contraponto). Durante todo o período colonial e imperial, o Brasil conviveu com as “rodas dos enjeitados” que fazia parte das Casa dos Expostos. Eram dispositivos construídos para as mulheres que precisavam abrir mão da maternidade.

Em 1755, o Reino de Portugal publicou uma regulamentação que determinava que as crianças escravizadas seriam consideradas “ingênuas” quando fossem entregues às rodas. Após essa determinação, aumentou consideravelmente a presença de crianças negras nessas Casas. Isso despertou a fúria de autoridades. O Arcebispo de Pernambuco afirmou que essas instituições tinham sido criadas para proteger a honra de mulheres honestas. A honra da família era vinculada à das mulheres. Desta forma, as filhas deviam manter-se castas e a esposa longe de quaisquer comentários sobre sua conduta moral. Esses elementos somados podem justificar o percentual majoritário de crianças consideradas brancas nas Casas.

A noção de “filho ilegítimo” não tinha sentido para mulheres escravizadas, porque a oposição “legítimo versus ilegítimo” referia-se ao mundo das pessoas nascidas livres. Para o Arcebispo, a Casa dos Expostos foi construída para salvar a vida de crianças que seriam sacrificadas pelas mães que, com essa atitude, protegiam-se da fúria da família que não aceitaria um filho ilegítimo como membro. As “escravas” não tinham honra para defender ou salvar, tampouco castigos. A intenção, denunciava o Arcebispo, era que as crianças fossem “criadas a custos do público”. Desta forma, essas mulheres poderiam continuar com suas promiscuidades. Para o Arcebispo, a solução seria manter os negros e mulatos, quando entrassem na Casa dos Expostos, como escravos.

E foi essa interpretação, de que as mulheres escravizadas eram desprovidas de honra ou de qualquer outro atributo compartilhado com as mulheres livres, um dos fios condutores nos discursos dos parlamentares em 1871. Ou seja, as vidas das mulheres escravizadas eram desprovidas de valores morais e elas estavam condenadas à não maternidade.

Com esse e outros contrapontos eu consegui compreender o equívoco dos estudos de gênero em utilizar os mesmos conceitos para analisar ontologias distintas que marcavam o mundo das pessoas livres e das pessoas escravizadas. Eu tive que construir alternativas conceituais para ler o que está nos Anais. Ainda que parte considerável das discussões durante toda a legislatura estivesse inserida no âmbito da biopolítica (orçamento para construção de cidades, pensões para aposentados, verbas para hospitais e escolas), quando os debates se deslocavam para o projeto de lei do “ventre livre”, me deparava com a necropolítica (A. Mmembe). Percebi que para uma analítica do Estado, eu precisava articular os dois conceitos: necropoder e biopoder. Entendi que as políticas de promoção da morte e do cuidado da vida, em termos da política de Estado, não estão separadas. Eram os corpos mortificados e mortificáveis que asseguravam, pela extração absoluta de suas energias vitais, os recursos materiais necessários para o Estado realizar as biopolíticas. O Estado se move, portanto, por um conjunto de necrobiopolíticas que são indissociáveis.

Em 1871 os corpos das mulheres escravizadas foram colocados em uma encruzilhada: o ponto de encontro (e de tensão) entre essas duas formas de gestão dos corpos sem solução aparente. Por um lado, ela seguiria na esfera do necropoder. O senhor e a senhora continuariam com o poder absoluto sobre suas vidas. Por outro lado, seus filhos e suas filhas se tornariam, legalmente, membros do Estado-nação e poderiam ascender às biopolíticas.

Mas essa encruzilhada acontece apenas na fachada legal. O que define a infância? A absoluta vulnerabilidade. Da dimensão simbólica (linguagem, valores morais, por exemplo) às questões objetivas (alimentação, higiene, etc.), a precariedade do ser se apresenta como o fundamento dessa existência. Não há, durante os debates, nenhuma preocupação dos parlamentares com o futuro dessas crianças. Diante do dado de que, a cada duas crianças nascidas escravizadas, uma morria antes de completar cinco anos de idade, não houve nenhum tipo de proposta ou mesmo nenhum discurso que apontasse os meios para alterá-la. Ao contrário, o que se observou após a aprovação da lei foi o aumento da mortalidade das crianças negras. Nascer livre, então, aumentou o risco de morte.

Vamos a outro contraponto. Em 1885, essa mesma lógica operará na lei que determinava que as pessoas escravizadas com mais de 60 anos ficariam livres (Lei dos Sexagenários). Era uma raridade ter pessoas escravizadas que alcançassem essa idade, uma vez que a expectativa de vida de uma pessoa escravizada era de 19 anos (e de uma pessoa livre 27 anos). As que conseguissem chegar aos 60 anos se tornariam livres para morrer. Assim como as crianças, os velhos foram abandonados. As duas leis que dispõem sobre a abolição no Brasil, antes da abolição definitiva (em 13 de maio de 1888), incidiram exatamente na esfera da existência humana mais vulnerável: a infância e a velhice. E aqui está a mágica dessas leis: serem o contrário daquilo que aparentam ser. Um tipo de performatividade invertida que se caracteriza por produzir efeitos contrários aos anunciados. A lei Áurea também seguiu a mesma lógica de performatividade invertida das anteriores.

A primeira geração de crianças negras do Brasil, as que legalmente iriam compor a população brasileira, nasceu condenada à morte e sem família. Essa foi a moeda de troca (não dita) barganhada pelo Estado. Concederia-se o status de ingênuo aos filhos e filhas de mulheres escravizadas, mas se retiraria deles a possibilidade de ter algo fundamental para assegurar que suas existências prosperariam: alguém que cuidasse de suas vidas. E aqui, a encruzilhada entre necropoder e biopoder cede lugar ao necrobiopoder. As crianças negras seguiram condenadas à morte para que as crianças brancas, as filhas da biopolítica, tivessem mais chances de prosperar.

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e Pesquisadora Visitante do CES/Universidade de Coimbra.


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