Que jornalismo para uma sociedade hiperinformada?
Andrea Dip, Manon Paulic e WIlson Gomes debatem o jornalismo em uma sociedade hiperinformada (Foto: Rachel Sciré)
Esta semana me vi falando no seminário Jornalismo: As novas configurações do quarto poder, organizado pela revista CULT e pelo Sesc, sobre “o jornalismo diante de uma sociedade hiperinformada”. De fato, a nossa é uma sociedade “hiper” em muitos aspectos: hiperinformada, hiperconectada e até, ultimamente, hiperparticipativa. Longe de nós estão os períodos de pobreza informativa, seja por limitação do que podia ser coberto que por escassez de fontes de informação, como, por exemplo, na Ditadura Militar. Ainda mais em tempo de celulares que nunca desligam e de atualização permanente das mídias sociais conectadas em redes cujo tamanho alcança o mundo.
Curiosamente, no Brasil de 2018, a condição de superabundância da informação, da conexão e da participação política não se estende até a democracia. Não apenas porque, como é fato, desde 2014, decresceu rápida e intensamente entre nós a confiança nas instituições da democracia e a certeza de que a democracia é a melhor dentre todas as alternativas de regime político. Além disso, temos as reiteradas manifestações populares reivindicando intervenção militar, o início de um movimento de revisionismo histórico do golpe de 1964 e, principalmente, o impressionante crescimento eleitoral de uma candidatura com posições nitidamente antissociais e antidemocráticas. Assim, por mais paradoxal que pareça, a julgar pelo caso brasileiro, a hiperinformação não demonstra ser incompatível com uma “hipodemocracia”.
Mas como poderia tal coisa ser possível, se o ideal democrático sempre incluiu o cidadão capaz de formar opiniões bem-informadas e de tomar decisões baseadas em informação atualizada, extensa e completa? Em tal padrão, portanto, quanto mais informação de qualidade for produzida melhor será a condição para o exercício da cidadania e melhor o funcionamento do regime democrático. Não é à toa que o jornalismo como o conhecemos hoje tenha sido criado pela mesma sociedade burguesa que também forjava, ao mesmo tempo, a democracia moderna.
Então, temos abundância de informação, mas hoje os cidadãos sabem mais? Basicamente foram resolvidos os problemas de diversidade de fontes, de facilidade de acesso, inclusive por meios digitais, e, na maior parte do mundo, da posse do capital cultural necessário para que se desfrute dos abundantes estoques de informação. Mas onde está este cidadão socrático bem-informado quando a gente levanta a cabeça e não cansa de ver “fake news”, bolhas informativas e radicalização? Há informação “de qualidade” disponível, mas o consumo de informação intencionalmente forjada e a distribuição de desinformação nunca teve o alcance atual. Há diversidade de fontes, mas o fenômeno das bolhas de interações sociais (ou câmaras de eco), em que a homogeneidade é claramente preferida à heterogeneidade, converte-se no fenômeno das bolhas informativas. Bolhas informativas são aquelas em que a informação que se prefere consumir é a que satisfaz às expectativas do meu ambiente social e/ou que tenha a chancela da comunidade de pessoas que pensam como eu. Assim, ambientes sociais homogêneos atuando como filtro do consumo de informação convertem, de novo, abundância em escassez. E, por fim, temos a radicalização decorrente da valorização das afinidades, uma vez que grupos em que as posições não são sistematicamente desafiadas tendem a reforçar, justamente, as ideias mais radicais dentre aquelas que nos representam.
Temos hiperinformação, sim, mas a esfera pública política melhorou? Há de ter melhorado, sim, mais há também, cada vez mais, polarização política, o ódio corre solto, há cada vez mais idiotas motivados e estamos vivendo uma virada ultraconservadora, com pautas morais reacionárias dominando escolhas eleitorais. Este exato momento, portanto, não é muito encorajador para quem sustenta valores liberais e democráticos.
Por fim, nesta época em que a superabundância de informação demonstra não ser capaz, por si só, de garantir um cidadão bem informado, convém pensar que papel o jornalismo pode ainda cumprir nesta equação. A contribuição do jornalismo brasileiro para os tempos sombrios que, com otimismo, estamos atravessando, não é difícil de identificar. O jornalismo sairá desta crise menor do que nela entrou e isto por muitas razões, desde as razões clássicas que fazem parte do repertório do “media blaming” mundo afora até razões relacionadas à baixa sofisticação da informação política oferecida para orientar os cidadãos quando o universo político lhe pareceu caótico e incompreensível. Isto aconteceu não apenas porque, como se crê, o jornalismo resolveu jogar politicamente quando deveria mostrar e analisar o jogo, mas sobretudo porque mais serviu para atiçar fúrias e provocar paixões do que para levar as pessoas a uma reflexão sensata, realista e madura sobre os eventos; mais se esforçou para prover scripts cheios de antagonistas e protagonistas, peripécias e desenlaces, para o desfrute fácil da dramaturgia política, do que para oferecer quadros interpretativos à altura da complexidade dos fatos. Se o jornalismo não é capaz de oferecer mais do que as pessoas comuns poderiam conseguir, produzindo sozinhas ou em seus ambientes sociais, o sentido dos acontecimentos político, para que serviria afinal? “Mentir sozinho eu sou capaz”, como diz a canção, mas para me indignar, entender grosseiramente e interpretar simploriamente tampouco preciso de ajuda.
Mas o que o jornalismo poderia afinal fazer diferente do que faz? Resumo as minhas propostas para o jornalismo de sociedades hiperiformadas e hipodemocráticas em apenas dois temas.
Antes de tudo, precisamos de um jornalismo para pessoas que hesitam. Um jornalismo para céticos. Céticos não são agnósticos, não são negadores da realidade. Céticos são, literalmente, aqueles que retardam o seu próprio julgamento. O jornalismo da crise política brasileira é um jornalismo que empurra, que quer estimular a resposta comportamental do seu leitor ou espectador para a obter ainda a tempo de a medir e documentar. Que quer a sua indignação já e aqui, neste exato ponto da narrativa. É um jornalismo que tem pressa na busca da reação do seu público e que, ao construir suas narrativas, deixa já organizada a posição emocional que dele requer. Ora, bolas, não estranha que ninguém mais hesite neste país! Viramos o país das certezas fáceis e automáticas em assuntos de política e democracia. “Penso, logo hesito”, portanto, deveria ser o tema cético fundamental que nos permitiria escapar deste estado de insanidade geral em que há muita informação, muita certeza e tão pouco conhecimento.
A minha segunda proposta para este milênio é igualmente simples: precisamos de um jornalismo que trate o complexo com complexidade. Isso supõe a sutileza de respeitar as várias nuances dos fatos e a delicadeza de prestar mais atenção nas coisas. Apresentar complexamente o que é complexo não é se perder em uma linguagem obscura e produzir ainda mais confusão. É o contrário disso: é não permitir que a necessária simplicidade da apresentação aplane, achate e empobreça os fatos que são necessariamente complexos. Dito de outro modo, gostaria simplesmente de um jornalismo que me tratasse como um adulto, alguém capaz, inclusive, de compreender os paradoxos e as contradições inscritos na condição humana e dos fatos que têm a ver conosco. Talvez um jornalismo capaz de restaurar a hesitação e de refletir apropriadamente o nível de complexidade inerente aos acontecimentos seja a única instituição capaz de produzir o que hoje corresponderia a uma nova definição de informação de qualidade. E o que hoje poderia contribuir para uma sociedade em que mais informação leve necessariamente a mais democracia e a melhores democracias.