A performatividade de gênero e do político

A performatividade de gênero e do político
A filósofa Judith Butler (Foto Ullstein Bild/Getty Images)

 

Autora de uma obra marcada pela retomada da filosofia política numa situação em que o pensamento parecia esvaziado para enfrentar as acusações de impotência diante dos grandes desafios do complexo cenário da vida contemporânea, relativismo e niilismo moral, Judith Butler chega ao Brasil acompanhada do lançamento de dois livros que comprovam o fôlego de seu pensamento para muito além das questões de gênero, pelas quais se notabilizou por aqui desde a tradução, em 2003, de Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.

Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, pela Civilização Brasileira, e Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, pela Autêntica Editora, chegam para se somar a O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte, editado em 2014 pela Editora UFSC (ver resenhas nesta edição), e começam a delinear melhor o perfil dessa pensadora cuja marca de gênero é ao mesmo tempo fundamental e necessariamente insuficiente. Desde Nietzsche, mesmo considerando os desdobramentos na obra de Michel Foucault (de quem Butler é tida como continuadora) e seu conceito de biopolítica –, principalmente entre seus leitores franceses –, a materialidade dos corpos não havia ocupado tamanha centralidade no pensamento filosófico.

Nesse sentido, Bodies that matter: on the discursive limits of sex, escrito em grande medida para responder a diferentes críticas à proposição de compreender tanto sexo quanto gênero como um sistema discursivo que se inscreve sobre os corpos tidos apenas como biológicos, pode ser considerado um ponto a partir do qual Butler também se inscreve na história da filosofia como a pensadora contemporânea de um “verdadeiro momento filosófico”, expressão do francês Patrice Maniglier para se referir não apenas a uma época, mas a um pensamento que demanda incessantemente ser relido e retomado. Entender sexo/gênero/desejo como um sistema discursivo que opera a diferença sexual levou o pensamento de Butler ao estatuto de paradigma da crítica à heteronormatividade.

Tem sido assim desde a publicação de Problemas de gênero, livro que fez de Butler uma das expoentes da teoria queer, tão bem definida por Vladimir Safatle no posfácio a Relatar a si mesmo como um pensamento que “toma como identificação de si o que parece expulso da reprodução normal da vida”. Se corpos performatizam gêneros a partir de uma estrutura de repetição que contém nela mesma a possibilidade de transgressão, corpos também indicam a condição precária da vida, tema de Quadros de guerra (mas também de Precarious life: the power of mourning and violence, título que o antecede). Escrito no contexto do debate norte-americano sobre a guerra contra o Iraque e as práticas de tortura nas prisões de Guantánamo e Abu Ghraib, Quadros de guerra também diz respeito ao público brasileiro ainda estarrecido com o episódio recente de um trem que destruiu o corpo de um ambulante morto nos trilhos ferroviários do Rio de Janeiro.

Para pensar o luto como condição de reconhecimento do valor de uma vida, como faz Antígona na reivindicação do direito de enterrar seu irmão, Butler recorre à teoria do enquadramento do sociólogo Erving Goffman a fim de indicar como a fragilidade dos corpos diante dos aparatos estatais de poder e das imposições de normas de gênero – a rigor, indissociáveis – são resultado da construção do nosso olhar sobre violência física a partir de marcas biológicas restritas por categorias identitárias e heteronormativas.

A filósofa cuja tese de doutorado é sobre a recepção francesa do pensamento de Hegel no século 20 faz parte também de uma retomada da filosofia política a partir daquilo que poderia apontar para o seu fim: a derrocada da centralidade do conceito de luta de classes a partir do triunfalismo dos discursos de fim da história e a emergência das políticas da diferença. O esgotamento das políticas da diferença – para usar uma expressão cara a Vladimir Safatle, principal expoente do debate com a filósofa no Brasil – faz Butler retomar o conceito hegeliano de reconhecimento, central na discussão sobre direitos.

Da violência normativa de gênero se chega ao tema da violência ética discutida em Relatar a si mesmo, mais um dos lançamentos editoriais que, além de suprirem o longo espaço de mais de uma década desde a primeira tradução de Butler em português, se valem da sua primeira vinda ao Brasil para renovar o interesse por sua obra. O livro parte de um diagnóstico de que as mudanças nas normas sociais nos fizeram chegar a um ambiente de niilismo moral a partir do qual só se pode recuar. Num clima de histeria não muito diferente do que se pode assistir no Congresso Nacional dominado por forças religiosas, prevaleceria a ideia de que a garantia dos direitos homossexuais é a abertura de uma porta para o inferno da ausência de norma, cujo pecado maior estaria em não poder ser universalizável.

A disjuntiva entre universal e particular é o eixo da discussão ética de Butler, que retoma a crítica de Nietzsche e Foucault a Kant, para quem o fundamento da moralidade é a autonomia da vontade do sujeito moral. Ora, argumentariam os críticos, se com Hegel e a partir dele, o sujeito perde a possibilidade de se afirmar enquanto tal, uma “falha ética” advinda desse sujeito partido por uma diferença intrínseca contaminaria todo o fundamento da moralidade. Já para Butler, o que é considerado falha pode “muito bem ter uma importância e um valor ético que ainda não foram corretamente determinados por aqueles que equiparam, de maneira muito apressada, o pós-estruturalismo com o niilismo moral”. Em outras palavras, o questionamento da norma não é sua destruição, mas a busca por normas que melhor nos sirvam.

Com essa formulação, trabalha-se pela ampliação da universalidade até um ponto impossível, como Butler diz nessa entrevista à CULT, concedida como parte da recepção da filósofa no Brasil, onde faz conferências na UFBA, na UFSCar, e no I Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades: “Sinto que ainda não alcançamos um conceito do universal que realmente inclua todas as populações que, por direito, desejam ser representadas dentro de seus termos. A conquista talvez seja impossível, mas é um ideal em direção ao qual lutamos. E essa luta é histórica”.

Judith Butler (Foto Thomas Karlsson)
Judith Butler (Foto Thomas Karlsson)

Existe uma gama ampla de pesquisas relacionadas ao seu trabalho tanto no Brasil como na America Latina. Há mais de dez anos que os estudos sobre sexualidade e gênero em áreas como antropologia, sociologia e filosofia têm investigado assuntos como performance, interatividade e paródia. Você tem consciência da repercussão das suas ideias no Brasil?

JUDITH BUTLER Eu tenho alguma noção acerca da repercussão do meu trabalho no Brasil, porque as pessoas me mandam notícias, livros, vídeos de performances. Eu vejo que mesmo agora, hoje, existem maneiras em que a performance é central para as demonstrações públicas, o exercício da liberdade de gênero e também para a liberdade de reunir-se em assembleia. Eu tenho acompanhado a tradução de alguns dos meus livros para o português, e tem sido muito animador ouvir tanto de estudiosos quanto de ativistas que derivam algo desse trabalho.

Durante os últimos dez anos, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade era o seu único livro publicado no Brasil – o que limitou a pesquisa sobre seu trabalho a um foco muito específico do debate sobre gênero. Assuntos da sua filosofia política, como as políticas de identidade, precariedade de vida e reconhecimento poderiam dar aos pesquisadores uma compreensão mais ampla de suas ideias. Você pretende falar sobre esses temas durante as suas conferências no Brasil?

JUDITH Eu pretendo, sim, falar sobre política corporal, sobre a importância de corpos reunidos, o porquê de podermos pensar a performatividade não só como algo que uma pessoa faz, mas também como algo encenado no coletivo. Eu pretendo demonstrar que meu trabalho sobre performatividade de gênero está ligado à política de precariedade sobre a qual tenho pensado nos últimos anos. Afinal, ainda que tenhamos que lutar por liberdades individuais, temos que pensar o lugar de corpos atuantes e de corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia. A meu ver, não existe democracia sem assembleia, e nenhuma assembleia sem uma forma plural e consubstancial de performatividade.

Atualmente tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que pretende restringir o conceito de família aos casais heterossexuais e seus filhos. Na sua opinião, seu livro O clamor de Antígona: parentesco entre a vida e a morte pode nos ajudar a encarar essa posição conservadora?

JUDITH Meu livro é apenas uma contribuição a um amplo debate sobre parentesco que está acontecendo pelo mundo todo. No Brasil, certamente, mas também na Polônia, na França. Eu acredito que esses esforços para “definir” a família em sua forma restrita, heterossexual e matrimonial, para fazer com que crianças sejam derivadas biológica ou legalmente do casal heterossexual é uma tentativa de frear movimentos sociais e novas formas de parentesco que estão lentamente se tornando a norma. Tais definições estabelecem obstáculos para que todo tipo de pessoa, casada ou solteira, hétero, gay, lésbica, bissexual ou trans consiga estabelecer laços íntimos dentro dos termos da lei. Neste sentido, eles não estão definindo nada, apenas usando o poder da definição legal enquanto obstrução. Meu livro é uma pequena e acadêmica contribuição para um debate muito mais amplo e urgente.

Em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, você politiza a importância do luto público por vidas perdidas. De 2005 a 2014, 5132 pessoas foram mortas por policiais na cidade do Rio de Janeiro, a maioria jovens, negros e moradores de favelas. Como suas ideias sobre guerra podem ser estendidas a outras situações de violência?

JUDITH Acho que também devemos atentar ao modo com que vulnerabilidade e precariedade estão diferencialmente distribuídas, estabelecendo populações inteiras como “não lamentáveis”. O movimento Black Lives Matter, nos EUA, torna clara a maneira com que as vidas negras são facilmente “dispensadas”, seja por falta de amparo social ou pela violência policial irrestrita. Eu entendo que haja gravíssimas e consequentes hierarquias raciais no Brasil que nos mostram que uma das formas letais que o racismo assume é o poder de estabelecer critérios que determinam quais vidas são merecedoras de amparo, e quais são dispensáveis, “não lamentáveis”. Faz sentido para mim que haja raiva, politicamente justificada, diante dessa forma de poder.

Em Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, você defende uma mudança na concepção de que estamos vivendo num niilismo moral. Fale um pouco sobre isso.

JUDITH Bem, não tenho certeza do que os conservadores estão colocando, mas aqui estão alguns pontos. Algumas pessoas acreditam que uma mudança nas normas sociais irá produzir uma forma de niilismo moral. Se existe o casamento gay, ou se é assegurado às pessoas trans o direito de mover-se e viver como queiram, isso levará ao “niilismo moral”. A Igreja Católica em algum momento colocou que, se a homossexualidade for “aprovada”, o que nos deixaria de “aprovar” o sexo com animais, árvores etc.? São todos argumentos histéricos que se recusam a aceitar as mudanças profundas que ocorrem nas normas que ditam sexualidade e gênero. Existem outros, na região da filosofia, que dizem que devemos agir como se as nossas ações fossem universalizáveis. Esses são os kantianos. Ainda assim, minha tréplica é que agimos dentro de nossa situação histórica. Até nossa capacidade de agir está historicamente condicionada e estruturada (não determinada!). Sinto que ainda não alcançamos um conceito do universal que realmente inclua todas as populações que, com direito, desejam ser representadas dentro de seus termos. A conquista talvez seja impossível, mas é um ideal em direção ao qual lutamos. E essa luta é histórica.

Muitos filósofos, especialmente Hegel, mas também Foucault e Derrida, têm influenciado seu trabalho. Você pode fazer uma pequena seleção de mulheres pensadoras que a influenciaram?

JUDITH Simone de Beauvoir foi muito importante para mim. Foi ela quem me deu, quem deu pra tantos de nós, a formulação “Não se nasce mulher, torna-se uma”. E Monique Wittig, que deu a Beauvoir uma leitura original, perguntou se, de fato, qualquer um de nós precisa se tornar mulher, e quais os riscos de habitar essa categoria. Eu também fui profundamente influenciada pela historiadora Joan Scott, a filósofa política Chantal Mouffe, as escritoras Susan Sontag e Anne Carson, e mais recentemente pelos trabalhos de Simone Weil e Hannah Arendt. Arendt me deu uma maneira de revisar minha antiga teoria de gênero performativo (mesmo que ela provavelmente detestasse a noção de gênero). Ela oferece um caminho para pensar a política como necessitando de ações plurais e consubstanciais, e isso me parece um jeito importante de pensar a performatividade de gênero com a performatividade do político. Enquanto feminista, já li muitas grandes autoras que me influenciaram, incluindo Gayle Rubin, Angela Davis e Bernice Johnson Reagon, para mencionar só algumas. Talvez sejam meus alunos que me afetem mais, desafiando as minhas ideias, provocando-me a conhecer o presente.

Tradução Pedro Köberle


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