O que o início da campanha eleitoral na TV pode significar para o bolsonarismo

O que o início da campanha eleitoral na TV pode significar para o bolsonarismo
Uma campanha que surgiu e se manteve na internet conseguirá fazer frente a campanhas televisas clássicas? (Reprodução)

 

Uma campanha eleitoral se dá em várias arenas e em vários ambientes de comunicação. A campanha eleitoral deste ano entrou agora na fase da mídia pública, por meio do horário de propaganda gratuita, distribuído em conformidade com a lei e disciplinado pela autoridade eleitoral do país. De fato, o horário eleitoral no rádio e na televisão começa nesta sexta-feira (31) e vai até o dia 4 de outubro. Antes havia começado o período de propaganda autorizada na internet, por meio de sites, blogs e redes sociais das candidaturas. Inclusive com a compra de propaganda em empresas de plataformas digitais.

Na perspectiva das coordenações de comunicação dos candidatos, partidos e coligações, e na cabeça das autoridades eleitorais, o centro da campanha costumava ser a televisão, secundariamente o rádio. Agora se espera, enfim, que um uso controlado de meios digitais possa ter um papel auxiliar na luta pelo convencimento dos eleitores. Mas esta relação, pelo menos este ano, está longe de se definir em termos tão convencionais.

“Campanha” significa coisas muito diferentes. Para a autoridade eleitoral, que tem a responsabilidade de arbitrá-la e de corrigir os seus abusos, a campanha é um conjunto de ações de comunicação estratégica e de articulações políticas a cargo de uma coordenação de planejamento e execução, que responde integralmente por ela ante a Justiça. Na vida como ela é, a campanha é tudo o que as pessoas fazem, individual ou coletivamente, para promover uma candidatura. Nesta última perspectiva, obviamente a campanha eleitoral não começou em agosto, quando a lei eleitoral autorizou as coordenações de campanha a fazer apenas algumas coisas, exclusivamente por certos meios e de certos modos, estabelecendo, inclusive, as penas cabíveis nos casos em que os precisos limites sejam ultrapassados. Já a campanha no segundo sentido corre solta, praticamente sem peias ou limites, e está funcionando desde que começaram a se juntar pessoas para promover candidatos, partidos e ideias políticas. E se isto vale em geral para a promoção de candidaturas em ambientes sociais comuns, como família, ambientes de trabalho ou estudo e igrejas, vale de maneira ainda mais adequada para os novos ambientes sociais digitais, criados simplesmente a partir de afinidades entre as pessoas.

Neste caso, se a campanha de, digamos, Amoedo ou Meirelles, começou efetivamente no dia em que a Justiça autorizou a compra de visibilidade (“impulsionamento”) no Facebook, as campanhas de Lula ou Bolsonaro há mais de ano já mobilizam e envolvem centenas de milhares, talvez milhões, de pessoas nos ambientes sociais formados a partir das redes estabelecidas em plataformas de mídias sociais. Além disso, se os atos de uma campanha disciplinada pelas autoridades são limitados a comportamentos que se consideram justos, limpos e leais com os demais concorrentes, a campanha digital real não conhece limites e lança a mão de todos os meios possíveis para a conquista de atenção e visibilidade, para o reforço ou propagação de ideias e pautas, para a promoção de causas, agendas e, naturalmente, candidaturas.

As fake news, por exemplo, que agora chamam a atenção de todos, não são uma subespécie de jornalismo, como muitos pensam, mas uma típica ação de política suja criada para o uso e desfrute da disputa em ambientes digitais. São apenas mais um tipo do que, no universo digital, se convencionou chamar de “conteúdos” – materiais expressivos de qualquer natureza cujo propósito é circular em ambientes digitais, em grande velocidade e com alcance sem precedentes. Neste universo, áudios e imagens com todo o tipo de intenção, falsas matérias jornalísticas (fake news), memes, “textões” e até notícias, inteiras ou recompostas pela incessante oficina criativa e editorial dos usuários, circulam de maneira febril entre uma plataforma e outra, entre um aplicativo e outro, entre um cluster e outro. Assim, vão se formando, reforçando e reproduzindo opiniões políticas e imagens públicas, assim se formulam e se consomem narrativas e interpretações sobre os fatos políticos, assim se estabelecem identidades e vínculos entre pessoas que nunca se viram nem nunca conviverão em ambientes físicos, mas que agora dividem um mundo de convicções comuns, sem falar no afeto digital distribuído na forma de curtidas e compartilhamentos.

Além disso, nas campanhas digitais (no segundo sentido) é que a disputa pela atenção pública ganha outras formas, além daquelas disciplinadas pela simplória compra de impulsionamento da nova lei eleitoral. O universo digital não apenas incorpora, suplementa ou substitui os ambientes sociais. A digitalização da vida não implica apenas que a convivência agora tem a mediação de dispositivos móveis de comunicação e de aplicativos de mídia sociais, ou que o que era fala e performance, agora foi digitalizado como “conteúdo”. Significa também que agora todos os comportamentos, atitudes e ações nos novos ambientes sociais se transformam em rastros digitais, marcas, dados. A digitalização é seguida pela datificação da vida social e política. Nossos relacionamentos e nossos conteúdos e tudo o que nisso implica de preferência e diferença singular é dado, que pode ser tratado de forma a produzir inteligência.

A campanha digital, na vida como ela é, em 2018, implica necessariamente o processamento de gigantescos volumes de dados para se produzir inteligência, isto é, para produzir uma compreensão acurada e refinada dos movimentos na opinião pública, um entendimento sofisticado dos meios e modos de condução da atenção pública. No nível mais sofisticado isso implicaria em campanhas inteligentes, com capacidade de identificar a alcançar públicos-alvo invisíveis “o olho nu” e de endereçar mensagens precisas a determinado grupo. No plano mais elementar, isso significa principalmente o uso de aprendizado de máquina ou aprendizado automático (machine learning) para simular comportamento humano de engajamento e participação em campanhas. Tanto para induzir as pessoas a superestimarem a força de uma ideia ou do engajamento popular com um candidato, quanto para incrementar, numa escala de milhões, a entrega de quaisquer conteúdos se queria distribuir às pessoas online. Em geral, conteúdos de campanha negativa ou de política suja.

De fato, em ambientes digitais facilmente se perde a noção do que é resultado do envolvimento de pessoas reais com um candidato, uma causa, uma agenda, um clima de opinião – o que se chama em jargão de engajamento orgânico -, e o que resulta da intervenção de aplicações algorítmicas e de machine learning, feita para inflar falsamente as impressões que temos da força de uma posição política. Ou feita para martelar e promover incansavelmente um conteúdo na opinião pública, não importa o quão falso e nocivo ele seja.

Certamente, não apenas de bots e fake news, os fantasmas que mais assombram a política em 2018, são feitas as campanhas no seu segundo sentido. No caso brasileiro, sabe-se que tanto o lulismo quanto o bolsonarismo, não por acaso movimentos ligados aos dois principais líderes na corrida eleitoral deste ano, devem-se em grande parte ao envolvimento orgânico das pessoas em ambientes digitais. As duas campanhas chegaram até aqui e até este ponto sem propaganda eleitoral, mas sobretudo sem as cotas diárias de sonoras e citações distribuídas na cobertura regular e oficial da política pelas empresas de comunicação. Bolsonaro por ser um outsider da política, além disso, tosco e antissocial, que só foi notícia, em chave negativa, quando produziu algum dos sus feitos ou ditos escatológicos. Lula, porque foi acusado, julgado e condenado, antes na mídia que nos tribunais, e, por fim, encarcerado. Apesar disso, chegam na frente da corrida eleitoral a poucas semanas do primeiro turno, tendo à disposição apenas a cobertura negativa da mídia e a cobertura positiva das mídias sociais.

Uma vez que é pouco provável que Lula continue candidato nas próximas semanas, Bolsonaro assume inevitavelmente a dianteira da corrida presidencial. Mas começa hoje a propaganda eleitoral gratuita e Bolsonaro, em decorrência das regras vigentes para distribuição de tempo de antena, praticamente não terá uma campanha de televisão. Assim, pela primeira vez na história das disputas presidenciais, saberemos se uma campanha consegue se manter na liderança da disputa pelo principal cargo do país apoiado exclusivamente na cobertura jornalística (a chamada “free media”) e, principalmente, na campanha digital. Uma campanha que surgiu e se manteve em ambientes digitais, conseguirá, usando apenas o engajamento orgânico dos seus partidários e o uso extenso de bots e outros procedimentos automáticos online, fazer frente a competidores com tempo e recursos para fazer uma campanha televisa clássica? Será que a campanha centrada na televisão terá, enfim, com o estágio em que nos encontramos nas campanhas digitais, encontrado um desafiante à altura?

Por outro lado, se para você a eleição de Bolsonaro é um problema político e moral tão medonho que lhe impede de apreciar o intrigante problema da disputa entre um Bolsonaro digital e os seus adversários televisivos, por exemplo, convido-o a prestar atenção no que acontecerá na próxima semana. Sim, eu sei que todo mundo detesta a propaganda eleitoral gratuita, mas eu tenho que lembrá-los que se o seu pavor neste momento é a perspectiva de vitória de Bolsonaro, a campanha na TV é possivelmente, desta vez pelo menos, sua melhor aposta para que o jogo mude. Ou Bolsonaro é contido pela propaganda televisiva, e o cenário se altera em uma ou duas semanas, ou será muito difícil que ele não prevaleça, no mínimo a ponto de não ir para o segundo turno da disputa presidencial. Excluindo-se da equação eleitoral a figura de Lula, que o está batendo facilmente na intenção de votos, a propaganda na TV se transforma na última barreira contra o avanço dos mortos-vivos do bolsonarismo.


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